sábado, 3 de outubro de 2009
À esquerda
As esquerdas não poderão nunca abdicar (sob pena de esvaziarem a própria ideia de “esquerda”) de questionar o sistema capitalista, procurando reformá-lo através de um combate permanente contra a imoralidade do dinheirismo e da teologia do mercado, exigindo justiça e apresentando propostas que contribuam para a anulação das desigualdades, da pobreza e da violência.
Parece claro nesta altura, contudo, que se alguma medida for tomada pelos donos do mundo no sentido de sanar o sistema financeiro, será primeiramente com o intuito de defender os mesmos interesses de sempre, de modo a garantir a continuidade da acumulação e a prevenir sobressaltos. A anunciada “refundação do capitalismo” de que falava Sarkozy e outros líderes europeus… não passou de um episódico remoque de consciência perante a devastação da crise, invisibilizando-se no espectáculo da ambição política pela “riqueza” e pelo “crescimento”, à medida que são removidos todos os entraves jurídicos e simbólicos à proliferação dos mercados, aos fluxos de capitais e mercadorias, bem como às redes de informação que os suportam e dão expressão à nova ficção mercantil do conhecimento.
Assim, confrontamo-nos necessariamente com o clássico argumento de um sistema-mundo tão perfeito que produz a sua própria negação, absorvendo-a num processo em que é sempre parte de si próprio. Philip Dick intuiu-o brilhantemente em Vulcan’s Hammer, e Victor Turner, em The Ritual Process, deu-nos também vários exemplos de como o poder necessita de se contestar para poder perpetuar-se. O calendário festivo da velha Europa e da sua civilização agrária evidenciam o mesmo quando, no Entrudo, se assinala o fim do ciclo do Inverno.
O problema de todos aqueles economistas a que se reporta o graffiti “Estes economistas para quê?”, ou daqueles outros a que se referiu aqui o Nuno Teles (a propósito dos recentes ataques rasteiros do partido do governo à sua esquerda) é, precisamente, o do seu contributo para a opacidade do humano em face da vertigem da medida e da quantofrenia que os torna capazes de justificar e confundir as intenções e as consequências de quaisquer medidas de governação – mesmo quando se trata de redistribuir as migalhas pelos pobres e os milhões por essa legião de banqueiros falidos, Américo Amorim, Manuel Fino, elite milionária angolana… mais a concessão de bens e serviços públicos aos vampiros do costume. Todos eles ilustram bem “a cegueira própria da excessiva visibilidade” (Innerarity 2004); ou, colocando de novo o problema: “a negação está inscrita no próprio sistema, que deste modo se tornou inatacável” (idem). E não valerá a pena regressar ao beco sem saída de Althusser mas, antes, à interrogação crítica da consciência da finitude globalizada da economia, das comunicações e do conhecimento enquanto ficção mercantil; da percepção de uma rotundidade que é o “sistema-interno-do-mundo do capital”, essa estufa asfixiante, palácio de cristal, onde «ser-se humano passa a ser uma questão de poder de compra” (Sloterdijk 2008) e onde toda a dinâmica dos fluxos que o constituem é geradora de múltiplas opacidades, de figuras de excesso e de incerteza, de risco e de oportunidade (Innerarity, 2004).
A capitulação da esquerda (o socialismo na gaveta) perante a imposição da resignação, do realismo acrítico, do pragmatismo da terceira via, seria trágica. A denúncia da toxicidade do capitalismo é um imperativo moral. É urgente, portanto, um “esforço comum para reconduzir a economia à sua matriz ética donde nunca deveria ter saído”
O Capitalismo está claramente a cometer o pecado da Gula, sem se dar conta que caminha na direcção da sua destruição. Em vez de sacrificar proveitos de curto prazo em detrimento da sua sobrevivência a longo prazo, os agentes do Capitalismo, cegos pela ganância, tentam por todos os meios criar obstáculos a um mínimo de regulação que pouco tocaria no seu Poder económico-social, mas que talvez diminuisse a instabilidade financeira e os desequilíbrios económicos. Será que não se apercebem que uma nova grave crise económico-financeira, inevitável a curto prazo se nada fôr alterado, destruirá o pouco que resta da sua "legitimidade" e dos políticos que os agora protegem? Para a Esquerda que pretende uma mudança radical na relações de Poder na sociedade, pode até ser uma benção esta resistência do Capitalismo à "reforma". A velha tese de quanto pior, melhor, pois mais radical poderá ser a mudança sempre teve um fundo de verdade. O problema são os milhões que sofrem entretanto, e a possibilidade real da forte instabilidade futura ser aproveitada pela extrema-direita (que acaba por funcionar como protecção última dos detentores do Poder económico-social perante a fúria do povo - vide a ascensão de Hitler), sempre pronta a canalizar os mais vis sentimentos humanos.
ResponderEliminarTão unidos que eles estão... Que lindo. É só o cheiro de poder, passa assim que for necessário mostrar individualmente o que vale cada um. Então serão tão maus ou piores que os capitalistas... Esfomeados.
ResponderEliminarJPS