A situação é surreal: dezenas de professores contratados por uma empresa de Lisboa na garagem de uma empresa de reparação automóvel de Matosinhos para leccionarem Música e Inglês nas escolas do Porto. Isto ocorre no quadro das chamadas actividades de enriquecimento curricular, obra do Ministério da Educação e dos municípios. Estes jovens professores podem almejar, depois de feitos todos os descontos, receber menos de quatrocentos euros por mês. O abuso foi denunciado pelo deputado José Soeiro e pelo FERVE - Fartas/os d'Estes Recibos Verdes -, um movimento social que se dedica a lutar contra os falsos recibos verdes. Este pedaço de papel tem o poder, com a cumplicidade activa do Estado, de transformar 900 mil trabalhadores em mercadoria barata e descartável.
Para celebrar dois anos de luta, o FERVE organizou um livro editado pela Afrontamento. Esta crónica tem o seu título, como singela homenagem. É sobre "desigualdades sólidas, capitalismo líquido, vidas gasosas", para retomar a certeira formulação de Sandra Monteiro, directora da edição portuguesa do "Le Monde diplomatique". Uma obra colectiva que conta também, entre outros, com contributos de Manuel Carvalho da Silva ou do próprio José Soeiro, para além de depoimentos pungentes de quem, maioritariamente jovem, tem de viver na corda bamba.
Sabemos que o tal capitalismo líquido, o que corrói todos os laços sociais dando demasiado poder a patrões com poucos escrúpulos, comprime salários - uma vez que os trabalhadores precários auferem remunerações inferiores - e diminui os incentivos para a aquisição de novas qualificações, porque todos os horizontes se estreitam. O que talvez não seja tão conhecido é que o capitalismo líquido gera uma desmoralização que se inscreve na mente e no corpo, sem separações artificiais: a investigação na área dos determinantes sociais da saúde tem mostrado que a precariedade está associada a uma maior vulnerabilidade a vários tipos de doença, incluindo doenças mentais.
Face à cumplicidade dos poderes públicos, resignados ao ciclo vicioso de um capitalismo medíocre, que desistiram de disciplinar e de modernizar, o precariado vai lentamente descobrindo novas formas de associação e evitando as armadilhas dos que querem substituir a luta de classes pela luta de gerações. A lição desta história é clara: a decência no trabalho é obra da acção colectiva de todos os trabalhadores, dos que resistem ao esfarelamento dos direitos duramente conquistados e dos que reivindicam novos direitos. O informado activismo do FERVE, de que este notável livro é produto, revela que a lição está estudada e por isso pode ensinar-nos novas lições. Vale mesmo a pena aprendê-las.
A minha crónica semanal no i também pode ser lida aqui.
Muito bem que Carvalho da Silva na obra: afinal, os sindicatos têm bastantes responsabilidades nessa tragédia (sem ironia) que os recibos verdes são.
ResponderEliminarAprendi muito com o FERVE. Aliás foi ele que me ensinou o que eram os recibos verdes e impediu que um recém-licenciado aderisse a esta forma de escravatura moderna.
ResponderEliminarObrigado!
E não. Não é um eufemismo o termo escravatura. A única coisa que me permite auferir algum tipo de rendimento é a minha força de trabalho (maldita sina!). Tenho de me "vender" no mercado de trabalho. O mercado de trabalho só tem para me oferecer recibos verdes. Mercantilização da força de trabalho, trabalho como mercadoria. No fim de contas, as pessoas tornam-se "coisas", já não são tratadas como pessoas. E só existe uma saída legal: oferecer a minha força no mercado de trabalho.
E com a "elevada" mobilidade social que existe em Portugal arriscamo-nos a ficar a recibo verde durante toda a nossa vida.
É claro que posso ganhar mais traficando droga ou roubando joalharias. Mas não gosto de estar preso numa prisão, gosto mais de estar preso cá fora. Estou condenado!
Não se iludam. Um país que trata assim a sua juventude tem o seu futuro condenado desde já.
Vivemos numa democracia política mas numa ditadura económica. Não tenham dúvidas.
A Inspecção Geral do Trabalho não existe. A ACT é uma piada até porque tem trabalhadores a recibos verdes. Isto é fartar vilanagem!
Para aquelas que culpam os sindicatos pelos recibos verdes, acham justo um trabalhador que aufere apenas o rendimento do recibo verde e que é, de facto, um trabalhador dependente ter as condições e ser tratado como independente?
Mas o Mundo enlouqueceu? Sim, enlouqueceu e nao foi pouco. E ainda não parou...
Num mundo decente apenas se teria de saber se um falso recibo verde era injusto para ser prontamente rejeitado seguindo um pressuposto simples: "Não tenho o direito de escravizar o meu semelhante".
Era simples.
Mas que raio é que nos tolda o pensamento?
Estamos demasiado ocupados com o quê?
Enquanto não nos unirmos de uma vez por todas a nossa vida não irá melhorar.
Enquanto Paulo Portas usar o egoísmo e a inveja humana, usando para isso, o "rendimento mínimo" e, dessa forma, tentar dividir os que estão no mesmo lado da barricada os grandes movimentos de capitais que fluem para offshores (sem serem taxados!)continuarão a poder fluir. Curioso que Paulo Portas não falou destes últimos. É mais fácil bater nos mais fracos não é? Também é mais cobarde! E mais popular!
Engraçado que todas as pessoas que conheço não gostam de segundas-feiras. E são todas trabalhadores dependentes (vulgo: colaboradores). Coincidência? Não. As pessoas são consideradas como um "custo" para as empresas (não como um investimento) e apesar de "colaboradores" têm zero de colaboração na definição e planeamento de objectivos. Mas alguém se sente motivado assim? Os patrões em Portugal mandam, não lideram. Se querem que a produtividade suba deixem os trabalhadores, de facto, colaborarem com a empresa! Ah, e arranjem capital mais produtivo para que os trabalhadores não fiquem duas a três horas sem poder trabalhar o que os condenará ao rótulo de "factor de produção pouco produtivo".
O agravamento de impostos que se verificará será devido a fugas para offshores e não devido ao "rendimento mínimo".
Precisamos de acordar rapidamente...estamos a saque!
Cumprimentos