quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

Da crise de realismo ao realismo da crise

Cinco economistas académicos, entre os quais José Reis do Ladrões de Bicicletas, escreveram um importante artigo que saiu no Público de ontem. Oferece um retrato realista do estado da ciência económica e do seu ensino: «Esta crise é também um colapso teórico, uma falência de um modo de ver. A má teoria é um elemento central da crise». Vale a pena republicar na integra. Aproveito para recomendar quatro livros recentes que estão dentro do espírito do artigo. São quatro excelentes introduções a temas/correntes que, desgraçadamente, têm sido crescentemente marginalizados no ensino da ciência económica – história das ideias económicas, economia política, instituições económicas e comportamento humano e economia pós-keynesiana. Acho que podem ser úteis para todos os que, economistas ou não, se interessam por questões económicas.

A ciência económica vai nua?

Os tempos de crise tornaram-se tempos de acção inovadora, inesperada, imprevista. Por todo o mundo tem-se observado um movimento por parte dos Governos que tentam estabilizar a situação e revertê-la. Predominam políticas conjunturais, mas, caso singular à escala global, assiste--se à tomada de iniciativas coordenadas para consertar uma arquitectura financeira internacional demasiado permeável a falhanços sistémicos.

Começa, por isso mesmo, a ser altura de reflectir sobre as lições que a própria teoria económica deve retirar desta experiência, a qual, infelizmente, está ainda longe de ter terminado. A teoria económica dominante é profundamente insensível à realidade. Constitui, em geral, uma abstracção desatenta e trata os acontecimentos difíceis como um problema que não é dela. Na melhor das hipóteses, esforça-se por demonstrar, perante a turbulência e a crise, que não se passa nada de anormal e que os problemas se reduzem a erros humanos ou pormenores transitórios, passageiros, sempre devidamente previstos.

É das escolas de Economia e Gestão de todo mundo, sobretudo dos Estados Unidos, que tem saído uma boa parte dos operadores dos mercados financeiros e gestores de topo que lentamente acumularam decisões insustentáveis culminando na actual crise. Esta crise é, também por isso, um colapso teórico, uma falência de um modo de ver. A má teoria é, evidentemente, um elemento central da crise.


A realidade é o verdadeiro teste, por vezes doloroso, das ideias. E, neste momento, é o rigor e a relevância da realidade que deve falar mais alto do que as premissas e os modelos ainda em vigor nos manuais de Economia. A teoria económica convencional pressupõe, mais do que demonstra, que os agentes optimizam e os mercados harmonizam. A ideia de "mão invisível" é uma expressão usada uma só vez por Adam Smith, o filósofo celebrado como o pai da ciência económica, nas muitas páginas de A Riqueza das Nações. No entanto, Smith começa o seu livro por sublinhar a importância crucial da organização e do conhecimento, algo que os manuais modernos preferem ignorar. E importa lembrar que, para além deste, ele escreveu outro grande livro: A Teoria dos Sentimentos Morais. Muito boa gente acha que só o primeiro é ciência, é economia.

Os livros-texto que hoje dominam falam de racionalidade e de equilíbrio, abstracções insensatas que a prova empírica contesta com violência. Teorias deficientes têm, pois, ocupado o lugar das mais prudentes, das mais capazes de perceber que o económico não é uma esfera autonomizável do institucional, do político, do social, do psicológico. No passado era mais fácil encontrar manuais mais pluralistas e sensíveis às estruturas institucionais da realidade, mais baseados em lições retiradas de padrões históricos e não somente em deduções lógico-matemáticas. O ensino dominante não tem municiado os estudantes para conhecerem o mundo real e para o interpretarem, para saberem que comportamentos emergem, que sistemas institucionais se confrontam, que valores estão em crise e quais os que se reforçam.

Não é, portanto, ousado supor que no ensino da Economia e da Gestão tudo ainda continua como dantes, alheio a uma crise talvez descrita como mera mas rara anomalia, numa atitude fechada e defensiva face aos desafios do pensamento crítico. No entanto, não podemos esquecer que os operacionais dos mercados têm sido formados neste contexto intelectual. Ou seja, dificilmente o ensino da Economia e da Gestão não estará implicado nas causas da crise.


Com estes acontecimentos, as teorias que sabem acolher a incerteza, a dinâmica da evolução estrutural e, sobretudo, a noção de que a economia funciona de um modo complexo, da qual fazem parte os mercados mas também numerosas outras instituições, poderão assumir maior protagonismo. Ganha peso a convicção de que os comportamentos económicos, em vez de serem o resultado óbvio de respostas a incentivos, são sempre comportamentos limitados, provisoriamente ajustados às circunstâncias e aos contextos. Quer dizer, são comportamentos humanos.

Há, portanto, necessidade de responsabilidade e realismo crítico no ensino das Ciências Económicas e Empresariais, esses campos em evolução e sempre politicamente carregados. Algumas editoras têm, aliás, procurado reflectir a procura por maior pluralismo no ensino da Economia. Referimo-nos, por exemplo, às abordagens neo/pós-keynesianas, evolucionistas e institucionalistas - um portfólio de perspectivas para lidar com um mundo económico complexo, multidimensional e persistentemente surpreendente. É urgente que a academia as tire da sombra e lhes atribua o devido destaque.


João Ferreira do Amaral é professor do ISEG; Manuel Branco é professor da Universidade de Évora; Sandro Mendonça é professor do ISCTE; Carlos Pimenta é professor da Universidade do Porto e José Reis é professor da Universidade de Coimbra.

4 comentários:

  1. Li o artigo no Público e achei brilhante. O meu professor de economia no IST, Prof. Pinto Barbosa, avisava na primeira aula que o que ia ensinar era econometria e era apenas um instrumento matemático para compreender a economia real. Não tive mais formação económica, mas já desconfiava que muitas das teorias económicas actuais eram elucubrações teóricas com pouca correspondência com a realidade.

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  2. Parafraseando, "quem só sabe de economia nem de economia sabe".

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  3. Meu caro, um dos quatros livros recentes já terá pelo menos dois anos... De qualquer forma concordo com a recomendação. Estou a lê-lo e é brilhante!

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  4. A morte do capitalismo (re)anunciada...mais uma vez

    Em 2010 fazem-se as contas!

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