terça-feira, 14 de outubro de 2008

A esquerda face à crise II


Como defendia há tempos o economista João Ferreira do Amaral, ao nível global a esquerda deve reivindicar a refundação das instituições nascidas dos acordos de Bretton Woods (FMI e Banco Mundial), tornando-as mais democráticas e alterando os seus objectivos. Estas devem contribuir para uma nova estabilidade financeira mundial, reconhecendo o direito de protecção do sistema financeiro dos diferentes países e instituindo controlos internacionais que reduzam a mobilidade de capitais. Esta é uma boa altura para voltar à proposta de James Tobin de uma taxa sobre as transacções nos mercados cambiais.


A União Europeia pode e deve ser a base desta reconstrução global. No entanto, é necessário primeiro reivindicar uma alteração radical da própria política europeia através da redefinição do mandato e objectivos do BCE. Acabar com a independência política deste e colocar o crescimento económico e a estabilidade financeira como objectivos primeiros é condição para uma viragem da política económica europeia. O refinanciamento que este faz dos bancos europeus deve ser discriminatório no que toca aos seus fins, privilegiando o investimento produtivo em detrimento da especulação. A arquitectura institucional da UE deve também ser alterada: os artigos (56º e 48º) que no tratado de Lisboa garantiam a mobilidade de capitais devem ser recusados. Finalmente, como defende o João Rodrigues: "a União Europeia deve poder emitir «euro-obrigações», como parte de uma estratégia europeia coordenada de investimento público. Se temos moeda única e mercados integrados, temos de ter um orçamento federal com peso e dívida pública europeia. Para não falar de um sistema fiscal e de mecanismos públicos de controlo dos mercados financeiros comuns".


A nível nacional, não nos podemos refugiar no carácter internacional da crise para ficarmos de braços cruzados. É necessário atacar o modelo económico que esteve por detrás das actuais dificuldades e do aumento das desigualdades que empurra as classes mais desfavorecidas para as correntes do endividamento ad eternum. Assim, a proposta de uma reforma fiscal que altere o actual desequilíbrio entre salários e lucros é urgente. Além do combate à evasão fiscal por parte das empresas, a taxação das transacções financeiras, a discriminação na taxação de lucros (IRC) conforme os destinos destes (taxando mais a distribuição de dividendos do que o reinvestimento destes na produção), e a existência de limites na desigualdade salarial dentro das empresas, são medidas dificilmente caracterizáveis como radicais, mas que contribuiriam para a superação de um modelo de desenvolvimento que nos conduziu a um beco. Finalmente, face à recessão que o nosso país, como economia pequena e aberta que é, não irá evitar, o governo português deve exigir uma moratória ao Pacto de Estabilidade e Crescimento e desenhar um programa de investimento público de urgência que minimize os efeitos da crise no desemprego.


Com uma esquerda à esquerda do Partido Socialista a valer mais de 20% nas sondagens, um governo visivelmente desorientado face ao actual contexto de crise e eleições legislativas no próximo ano, a esquerda socialista tem hoje uma oportunidade para a mobilização popular que force uma ruptura com as políticas neoliberais das últimas décadas. Será a correlação das forças sociais que determinará se esta crise é apenas a confirmação da necessidade do apoio do poder político para a construção de mercados desregulados ou a oportunidade para um novo modelo de desenvolvimento económico.

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