domingo, 27 de abril de 2008

A esquerda italiana em estado de choque VII

Enquanto a direita populista, pós-fascista e xenófoba ocupava o espaço político dos partidos tradicionais que implodiram na sequência da operação ‘mãos-limpas’ (DC e PSI, nomeadamente), a esquerda ‘reformista’ revelava-se incapaz de construir um discurso claro, distintivo e mobilizador do eleitorado do centro esquerda. Ninguém conseguiu sintetizar melhor esta situação do que Nanni Moretti no seu filme Aprile, numa cena em que, desesperado ao ver Berlusconi propagar os seus mitos num debate televisivo entre os principais candidatos às eleições de 2001, grita para o líder do centro esquerda: «D’Alema, diz uma coisa de esquerda, diz uma coisa mesmo que não seja de esquerda, de civilidade, diz qualquer coisa, reage!».


A incapacidade da esquerda 'reformista' italiana para construir um discurso claro, distintivo e mobilizador resulta de um misto de trajectória histórica, de opções estratégicas, de inabilidade comunicacional e de um contexto em que os principais meios de comunicação são sistematicamente utilizados a favor do principal adversário.

Como escrevi num post anterior, a esquerda italiana foi dominada pelo PCI desde o pós-guerra. Depois de 3 décadas na oposição, apesar de uma indiscutível força eleitoral e social, os dirigentes do partido decidiram em meados da década de 1970 que havia chegado o momento de participarem directamente na governação do país. Esta opção estratégica tem guiado a linha de actuação dos herdeiros do PCI até hoje.

Quando o PCI se transformou em PDS (Partido Democrático de Esquerda) em 1991, o novo partido não levou consigo apenas a maioria da direcção do partido e a maioria dos delegados ao congresso em que a decisão foi tomada. Grosso modo, toda a estrutura de influência política e social que havia sido construída pelo PCI - incluíndo aquilo que ainda hoje são a principal confederação sindical italiana (CGIL), a maior associação recreativa e cultural (ARCI), a maior cooperativa de distribuição do país (Coop), para não falar das sedes locais, regionais e nacionais do partido, das editoras, livrarias, jornais, revistas e outros instrumentos da intervenção do PCI na sociedade italiana - ficavam agora sob influência do novo partido.

O objectivo da mudança de nome e de símbolos era, obviamente, o de distanciar aquele partido da imagem associada à história do comunismo, num esforço de atrair o eleitorado centrista. O desaparecimento da URSS em 1991 e o colapso dos partidos italianos do centro-direita acentuariam esta trajectória: o primeiro evento convidava a um corte mais radical com a história do comunismo (o símbolo do PCI, que surgia em versão reduzida no símbolo do novo PDS foi definitivamente abandonado); o segundo evento reforçou o sentido de urgência de conquista do centro político em Itália.

Mas, para o PDS, conquistar o eleitorado não comunista não era tarefa fácil: os eleitores dos ex-PSI e ex-DC haviam sido educados numa retórica estritamente anti-comunista, e a sua relutância em apoiar aqueles que durante décadas tinham sido vistos como agentes ao serviço dos interesses soviéticos era grande. De facto, os principais líderes do PDS - incluindo D'Alema, Fassino e o próprio Veltroni (recentemente derrotado nas eleições) - foram dirigentes do PCI durante mais de uma década até à mudança de nome e de linha política do partido. E Berlusconi, com os vastos meios de comunicação que controla, nunca deixou esquecer este facto, usando até hoje o termo 'comunistas' para se referir àquele grupo de dirigentes.

Tais dificuldades não impediram os dirigentes do ex-PCI de se manterem fieis à linha inicialmente traçada, ou seja, a busca do poder por aproximação ao centro. Nesse sentido, procuraram diluir ainda mais a identidade do partido e aligeirar a sua ampla estrutura de influência social e política: primeiro com a transformação do PDS em DS (Democratas de Esquerda), procurando afastar-se do modelo de partido de forte presença orgânica na sociedade italiana (aderindo a um modelo de 'partido ligeiro'); depois, com a construção de uma coligação com os segmentos da ex-DC e do ex-PSI que não haviam aderido às novas direitas, colocando figuras destacadas oriundas desses campos à cabeça das listas eleitorais (daí Romano Prodi); finalmente, fundindo os DS com sectores da democracia-cristã, do ex-PSI e dos radicais-liberais num Partido Democrático, que apresenta o homónimo americano como exemplo a seguir.

Os resultados desta estratégia de diluição do ex-PCI não têm sido os melhores. Por um lado, o preço a pagar pela atracção dos sectores centristas tem sido a adopção de um discurso que em pouco se distingue do produzido pelo centro-direita - sendo até, por vezes, mais liberal no campo económico e mais conservador no campo dos valores. Por outro lado, o abandono dos símbolos, de um projecto e de uma estrutura de intervenção crítica na sociedade não tem sido recompensado no campo eleitoral - o 'perigo comunista' continua a ser acenado à direita e a afastar os eleitores mais conservadores. Finalmente, esta estratégia esvaziou o espaço eleitoral à esquerda, limitando, simultaneamente, a possibilidade da sua ocupação por outras forças - seja pelo domínio que os ex-DS mantêm de muitas estruturas e recursos de intervenção social, seja pelo permanente apelo ao voto útil (sobre a incapacidade da 'esquerda de protesto' de contrariar esta dinâmica escreverei noutro 'post').

2 comentários:

  1. Ricardo, ainda não fizeste qualquer comentário mais aprofundado à tragédia que me parece maior. Os resultados do PRC e do PdCI. Pela primeira vez, no pós-guerra, o parlamento italiano não tem comunistas. Este momento surge em simultâneo quando em Espanha a representação é praticamente inexistente. O mesmo acontece em França. Qual a análise que fazes?

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