Os inquéritos de opinião que mostravam preocupação dos eleitores com o custo de vida foram sistematicamente desvalorizadas pelos analistas. Tornou-se comum ouvir que as “sensações” das pessoas não refletiam os números da economia. O termo “vibecession” surgiu para descrever uma situação em que não há uma recessão mas as “vibes”, ou sensações, das pessoas sobre o estado da economia são más. No início do ano, economistas reputados juntaram-se para debater esta questão enigmática: porque é que os norte-americanos estão pessimistas em relação à economia, apesar da sua aparente robustez? No New York Times, o economista Paul Krugman, vencedor do Nobel da disciplina e defensor da candidatura Democrata, garantia que “todas as boas notícias económicas validam [o governo de] Biden”. Na The Economist, chegou a ler-se que os eleitores estavam a demonstrar um “pessimismo irracional”.
A verdade é que os primeiros dados sobre a distribuição dos votos entre Democratas e Republicanos sugerem que houve uma viragem assinalável para os segundos entre os eleitores com menos rendimentos. Uma análise mais fina dos dados mostra que o cenário é bem menos idílico.
Em termos cumulativos, a maioria das pessoas perdeu poder de compra face ao período pré-inflação. Olhar para os salários por hora não permite ter em conta a redução no número de horas trabalhadas por semana desde a pandemia.
É um facto que, depois da perda de poder de compra registada durante o período inicial da inflação, houve uma trajetória de recuperação salarial e que esta foi mais intensa entre os escalões de rendimento mais baixo. Mas será que estes dados são suficientes?
Nos artigos "Trump vs. Biden: The Macroeconomics of the Second Coming" (aqui) e Good Policy or Good Luck? Why Inflation Feel Without a Recession (aqui), Servaas Storm e Thomas Ferguson analisam os dados de forma exaustiva e mostram que o salário mediano real estagnou desde 2021.
Em 2021-2023, 9 em cada 10 pessoas perderam poder de compra apesar dos aumentos salariais. Pior: todos os escalões de rendimento tiveram uma evolução pior que a da presidência de Trump (mesmo que os ganhos de 2017-2020 não se devam necessariamente à política económica deste).
Se olharmos para a evolução dos salários medianos reais por setor, a presidência de Biden também fica mal na comparação. Independentemente da responsabilidade de ambos os governos nesta evolução, é difícil que a comparação não tenha tido peso nas eleições.
No período em que a inflação foi mais intensa, as dificuldades financeiras foram sentidas sobretudo entre quem ganha menos. Além da incapacidade de pagar as contas, muitas pessoas reportaram a necessidade de saltar refeições ou adiar cuidados de saúde. Mesmo que a perda de poder de compra acabe por ser compensada ao fim de 1 ou 2 anos, isso não apaga a experiência de muitas famílias com rendimentos baixos que passaram por grandes dificuldades. Se tudo o resto não fosse suficiente, o aumento significativo do número de pessoas em situação de pobreza e de insegurança alimentar seria motivo para preocupação com o verdadeiro estado da economia.
Ainda que estas tendências não se devam necessariamente ou exclusivamente às políticas dos Democratas - sobretudo tendo em conta que o choque dos preços da comida e da energia, que resultou da reabertura das economias após a pandemia e da invasão russa da Ucrânia, foi historicamente elevado -, a perceção das pessoas sobre os governos depende da sensação de justiça/injustiça face às medidas adotadas.
Outros indicadores apontam para conclusões semelhantes. O "employment cost index" (que inclui no cálculo alguns benefícios oferecidos pelos empregadores além do salário) caiu em quase todos os setores entre 2019 e 2024 e só subiu em dois setores marcados por salários baixos.
Storm e Ferguson calculam ainda a evolução do rendimento das famílias (que, além dos salários, inclui também outras fontes de rendimento como as transferências públicas, especialmente relevantes para quem ganha menos, ou a propriedade). Mais uma vez, a conclusão não é positiva.
Os dados sugerem que devemos pôr alguma água na fervura das análises mais entusiastas sobre a economia dos EUA. Os ganhos recentes parecem concentrar-se nos "salários de subsistência", demasiado baixos para uma vida minimamente digna (percebe-se que não motive grande celebração). Mas há mais aspetos a ter em conta. A forma como a inflação é calculada baseia-se no cabaz de consumo típico das famílias, mas sabe-se que os padrões de consumo variam bastante consoante o rendimento. Ou seja, algumas subidas de preços afetam mais uns grupos do que outros.
O exemplo dos bens alimentares é ilustrativo. Em média, as famílias americanas gastam 11% do seu rendimento em comida (e é esse peso que é usado para calcular a inflação total). Mas os 20% mais pobres gastam quase 1/3 do seu rendimento nestes bens, pelo que são mais penalizados. Como a subida dos preços foi mais acentuada em bens essenciais (comida, energia ou habitação, em que os mais pobres gastam proporcionalmente mais), comparar o salário com a inflação oficial pode não refletir inteiramente a evolução do poder de compra de quem ganha menos.
Uma análise dos dados do Instituto de Estatísticas do Trabalho dos EUA mostra que o grupo dos 20% com menos rendimentos foi o que experienciou uma inflação mais acentuada desde a pandemia. Para este grupo, a subida dos preços terá sido 8,3% maior do que a inflação média. E os autores desta análise sublinham que mesmo estes valores não têm em conta outras dimensões, como a capacidade de substituição de consumos. As famílias mais pobres são provavelmente as que já consomem marcas mais baratas à partida. Há dados que que apontam para a existência de um fenómeno de “cheapflation”, isto é, subidas mais acentuadas dos preços nos produtos que eram mais baratos à partida, face às marcas que eram mais caras (o que, novamente, penaliza quem ganha menos).
Por último, o indicador usado para medir a inflação não inclui o custo do crédito. A subida das taxas de juro aumentou os custos de empréstimos à habitação, cartões de crédito ou empréstimos dos estudantes universitários. Este é outro problema das análises convencionais: não terem em conta que o aumento das taxas de juro representa um aumento (bastante significativo) dos custos na vida das pessoas.
Nesse sentido, vale a pena ler a análise do historiador Andrew Elrod sobre a forma como a política económica de Biden foi perdendo os seus eixos iniciais, centrados no custo de vida das famílias e na provisão pública de serviços essenciais. Por oposição do Senado, alterações das prioridades políticas ou outros motivos, a orientação mudou para uma versão de política industrial baseada em incentivos fiscais ao capital privado e assente numa retórica de "segurança nacional" face à competição da China. Além disso, muitas das medidas aprovadas no início da pandemia para combater o risco de pobreza foram descontinuadas (sem que os problemas deixassem de ser preocupantes).
Mesmo que contribua para a transformação estrutural da economia norte-americana - o que está longe de ser garantido -, é justo admitir que a política industrial leva tempo a produzir efeitos visíveis na vida das pessoas. O aumento do custo de vida requer medidas mais imediatas. A ausência de medidas mais robustas para regular preços de bens essenciais num contexto de crise, taxar lucros extraordinários e combater o aproveitamento das grandes empresas pode ter contribuído para as dinâmicas que observamos no voto.
Nada do que foi descrito pode ser lido como justificação do voto no programa autoritário e desigualitário oferecido por Trump, que não resolve nenhum destes problemas. No entanto, um bom diagnóstico é indispensável para pensar em alternativas.
Caro Vicente Ferreira,
ResponderEliminarperguntas:
1 - Se e verdade aquilo que os artigos aqui divulgados indicam, de que o rendimento de 90% dos consumidores americanos diminuiu de 2021-23, e que a inflacao incidiu essencialmente sobre bens essenciais nao substituiveis, entao onde e que os consumidores cortaram? Alguma categoria de bens de consumo que tenha recuado? Ou recuaram as taxas de poupanca?
Comentario:
Logo no inicio do episodio inflacionario, o Paulo Coimbra entre outros autores aqui no blog (incluindo salvo erro o proprio Vicente Ferreira) assinalaram correctamente que a inflacao era um choque de oferta iniciado pelos ajustamentos das cadeias de producao ao pos-COVID e prolongado pela guerra na Ucrania. Assim sendo, o aumento das taxas de juro seriam inuteis para combater o episodio - eu lembro-me na altura de ter acercentados em comentarios varios que pior que inuteis o aumento das taxas de juro na realidade ate agravariam, no curto prazo, o episodio inflacionista.
O Paulo Coimbra comentou, muito acertadamente que quem, verdadeiramente queria combater a inflacao deveria fazer esforcos efectivos para obter um cessar fogo imediato na Ucrania em vez de fornecer financiamento e armas para sustentar o conflicto armado.
Muitos previram, as consequencias nefastas a medio e longo prazo que a intervencao americana na guerra da Ucrania tera para o projecto imperialista americano. Vai-se a ver, se calhar a guerra na Ucrania teve efeitos bem mais prosaicos e de curto prazo na estabilidade governativa imediata dos EUA.
Uma coisa e certa, tudo isto se passou perante o entusiastico olhar classista dos economistas de aviario na TV.
Estes economistas? Para que?
Muito bom.
ResponderEliminarMas um pormenor foi uma kamala muito colada aos ricos
O que se vai passar com a Ucrânia, não vaticino nada. Espero para ver. Idem aspas para a economia dos USA/mundial. Lembremo-nos da piada que diz que a economia foi inventada para tornar a meteorologia uma ciência exacta.
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