O individualismo é em geral produto da sobrestimação do valor próprio e da subestimação do valor dos outros. (...) O individualista tem por vezes a ilusão de que o individualismo é uma manifestação de liberdade individual. A verdade é que, quem pense, decida e actue apenas pela sua cabeça e pela sua vontade individual acaba por ser prisioneiro das suas próprias limitações. Isolado, atrás da aparente liberdade, o indivíduo acaba por ser escravo de si próprio. (...) Ao contrário do que afirmam os defensores do individualismo, a opção pela formação de uma opinião colectiva e de uma actuação colectiva constitui uma afirmação de que o indivíduo se libertou das próprias limitações individuais. Constitui assim uma expressão da liberdade individual.
Álvaro Cunhal, O Partido com paredes de vidro, Edições Avante!, 1985, pp. 85-86
Estes excertos de Álvaro Cunhal ajudam a pensar sobre a relação entre liberdade individual e ação coletiva, para lá do individualismo liberal. Sem ação coletiva, não há liberdade. Cunhal ajuda a pensar politicamente, eticamente. Os que acham que a tradição marxista é desprovida de ética, devem ler, começando em Marx e recomeçando em Cunhal. Não podemos acabar em nós mesmos, realmente.
Nunca começamos ou acabamos em nós mesmos.
Basta pensar na lotaria nacional: a possibilidade de levarmos vidas longas, saudáveis e ilustradas depende sobretudo do país onde nascemos, de toda uma infraestrutura social. Depende também, e cada vez mais, da classe social, da lotaria familiar. O capitalismo de herdeiros aí está, com todo o desplante.
Daí a necessidade de reconhecer a dívida social com que nascemos, daí a necessidade de um imposto sucessório, por exemplo, daí a necessidade de irmos mais longe e alterarmos as relações de propriedade para barrarmos desigualdades tão cavadas. Daí a necessidade de termos consciência social. Há tantas necessidades sociais por satisfazer. E sabemos que existem meios e conhecimento. Falta poder.
Lá fui reabrir o livro herdado, com manchas, e lembrei-me do meu pai. Estávamos em 1985 ou 1986, tinha oito anos ou nove anos, e fui com ele ao Pavilhão dos Olivais, a uma sessão do PCP, com Álvaro Cunhal. Andaria em campanha com Cunhal uma década mais tarde. Lembro-me de ver o livro à venda e de ter fixado logo o nome, como não?
Andava na escola primária dos Olivais, em frente ao pavilhão, na mesma rua da faculdade onde acabei a lecionar, depois de muitas voltas. Também depois de algumas voltas políticas, acabei a apoiar o Partido de novo, desde 2015, depois de uma interrupção de pouco mais de uma dúzia de anos, de um voto no PS à militância no BE. Aprender e reaprender sempre.
Bom, o meu pai comprou o livro. O que é o Partido? E com paredes de vidro? Lá me terá explicado, mas já não me lembro da sua explicação. Leria o livro mais tarde.
É a única memória que tenho do meu pai de punho erguido, envergava um sobretudo esverdeado. Tê-lo-á erguido mais vezes, claro. Imitei-o, tal como imitava as minhas avós na Igreja. Sempre gostei de rituais, somos seres miméticos. Ele teria ainda muitas vidas, faleceria cedo demais, em 2017, num dia de fogo, num ano de centenário. Apesar de não ser militante desde o início dos anos 1990, o Partido estava representado, não me esqueço.
Quase quarenta anos depois dessa memória nos Olivais, prestei-lhe hoje, uma vez mais, a homenagem que devemos aos mortos, da Igreja cheia ao cemitério inundado de flores, onde se vai e não se está, creio que foi Saramago a dizê-lo. Hoje, estive mais tempo do que é costume, houve uma breve cerimónia religiosa. Enfim, é a homenagem aos que só morrem verdadeiramente quando morre a última pessoa que deles se lembra, como gostava de dizer o meu pai, que perdeu o seu pai ainda mais cedo, num acidente de trabalho em França, pouco antes de se tornar o primeiro licenciado da família. Morre-se a trabalhar.
Estou na sua, nossa, terra, geografia sentimental em estado impuro, rodeado de castanheiros e de carvalhos que, entretanto, cresceram, de paredes de granito que, entretanto, escureceram. Tudo o que escrevo parte daqui, agora estou consciente disso. Não estava, antes.
Há paredes de vidro por onde entram raios de sol, deixando ver o que precisa mesmo de ser visto, olhado, reparado.
História com h pequeno e grande, memória individual e coletiva. Sozinhos não somos nada. E somos sempre compelidos a tomar partido nesta vida. Mais vale fazê-lo de forma consciente.
Há homens que lutam um dia, e são bons;
ResponderEliminarHá outros que lutam um ano, e são melhores;
Há aqueles que lutam muitos anos, e são muito bons;
Porém há os que lutam toda a vida.
Estes são os imprescindíveis. Bertolt Brecht
Belo texto de memórias e sentimentos !
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