O anúncio de nova subida das taxas de juro por parte do Banco Central Europeu (BCE) voltou a animar o debate sobre a resposta à inflação em Portugal. Apesar de ter reconhecido que “os trabalhadores ficaram, até à data, a perder com o choque inflacionista”, a presidente do BCE, Christine Lagarde, justificou a subida dos juros com o argumento de que se “está a desencadear um processo sustentado de convergência em alta dos salários” e que o banco central tem de atuar para conter as “pressões sobre os custos unitários do trabalho”, de forma a “garantir que não conduz a uma espiral” de aumentos dos salários e dos preços.
A argumentação dos economistas que, por cá, se têm pronunciado em defesa da atuação do BCE é a de que o processo inflacionário tem momentos distintos: numa primeira fase, registou-se uma subida acentuada dos lucros das empresas, mas, numa segunda fase, os salários começarão a crescer e recuperarão naturalmente as perdas. No Expresso, Ricardo Reis escreveu que “faz parte do processo normal inflacionista as margens aumentarem”, uma vez que “os preços sobem mais depressa do que os salários” no início e que “naturalmente, nos próximos dois anos, os salários vão subir mais do que os preços, e as margens das empresas vão descer”. No entanto, há vários problemas com este raciocínio.
Começando pelo início: ao contrário do que afirma Reis, a inflação não foi causada pela expansão monetária dos bancos centrais (que já vinha a ocorrer há mais de uma década sem efeitos visíveis no nível geral de preços), mas sim pela subida de preços sistemicamente importantes, isto é, preços de produtos que representam uma parte importante dos custos de quase todas as empresas e setores de atividade e que, por isso, têm um impacto na evolução da maioria dos preços. Foi isso que aconteceu com a subida dos custos da energia, que rapidamente se alastrou a outros setores.
Face a um choque inflacionista, é expectável que as empresas tentem pelo menos manter as suas margens e que os trabalhadores tentem manter os seus salários reais. O desfecho desse conflito distributivo não tem nada de "natural", como afirma Reis, já que depende das relações de forças e do poder relativo de cada parte. Num contexto em que a taxa de sindicalização se encontra em mínimos históricos e a negociação coletiva continua a ser muito pouco expressiva, facilmente se percebe porque é que as empresas conseguiram proteger-se (ou mesmo aproveitar-se) do choque enquanto os trabalhadores suportaram os custos. Mais difícil será antever um crescimento “natural” dos salários em condições de negociação tão adversas para o trabalho.
Ao mesmo tempo que garante que os salários subirão “naturalmente” ou em linha com a produtividade (coisa que não tem acontecido), Reis defende a atuação do banco central e a subida das taxas de juro como resposta para a inflação. Acontece que a subida dos juros serve precisamente para restringir a procura através da compressão da atividade económica e do emprego. A própria presidente do BCE explicou que a ideia é produzir “um aperto suficiente” na economia. O desemprego e a quebra de rendimentos não são um dano colateral, são parte integrante desta política.
Ou seja, os economistas que nos dizem que os salários recuperarão “naturalmente” as perdas registadas são os mesmos que apoiam a subida das taxas de juro, cujo objetivo é precisamente comprimir os rendimentos e, com isso, a procura, em nome do combate a uma espiral inflacionista que a realidade tem desmentido nos seus próprios termos: a taxa de inflação está a baixar de forma consistente em Portugal justamente no período em que os salários começam a recuperar alguma da perda registada no último ano.
Mais: as garantias de que os salários crescerão “naturalmente” contrastam de forma clara com a oposição a medidas que têm como objetivo garantir aumentos salariais efetivos. Basta ver as críticas que economistas como Ricardo Reis (aqui) ou António Nogueira Leite (aqui) se apressaram a fazer à proposta de indexação dos salários à inflação, omitindo casos como o da Bélgica, que tem um esquema de indexação (com diferenças entre setores) e onde os trabalhadores do setor privado tiveram aumentos que permitiram proteger boa parte do poder de compra, sem que a taxa de inflação no país tenha sido muito diferente das do resto da Zona Euro.
Quando se chega ao cerne da questão – a repartição dos custos da crise – os economistas liberais colocam-se invariavelmente do lado mais forte. Felizmente, o debate económico não se resume a esta posição. No Financial Times, Adam Tooze questiona: “Reduções marginais da inflação devem ter prioridade sobre o desemprego? Se vemos nos sindicatos uma linha de defesa da democracia e de combate à desigualdade, não devíamos estar a apoiá-los em vez de condenar espirais preços-salários?” É a discussão que devíamos estar a ter por cá.
Artigo publicado inicialmente no Setenta e Quatro.
Ricardo Reis… o que previu em Agosto de 2007 que a crise financeira global duraria um mesito…
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