quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Dar conteúdo a um bom slogan

A lengalenga demagógica do costume sobre o monstro do défice ganha força. Na realidade, nenhuma economia em crise pode dispensar o défice. Ele é o outro lado da crise da economia privada e da recusa da economia pública em seguir os seus encadeamentos perversos. Se calhar vale a pena, neste contexto, repisar algumas ideias, já expostas em crónica no i, sobre a orientação desejável de um orçamento à altura das actuais circunstâncias: os ricos que paguem a crise ou, talvez de forma mais realista, os ricos que também paguem a crise. Esta tem de ser a palavra de ordem a recuperar e a difundir por todos os socialistas.

Um orçamento em tempos de crise não se faz sem escolhas políticas claras e sem uma agudização dos conflitos. A radicalização da utopia liberal já está aí, difundida pelos cães de guarda do costume, os que sabem, na esteira de Milton Friedman, que a crise é sempre uma oportunidade para aumentar a discricionariedade capitalista, para enfraquecer o Estado Social e reforçar o Estado Penal e para canibalizar a esfera pública. Temos de lhe dar resposta, escolhendo os conflitos que valem a pena, os que podem reduzir no futuro a toxicidade do capitalismo português. O combate ao desemprego e às suas consequências têm de ser a prioridade orçamental. Nenhum desempregado pode estar sem rendimento, nem que para isto seja preciso puxar pela imaginação política e encontrar forma de fazer do Estado o empregador de última instância.

O sofrimento humano, a perda de qualificações ou a destruição irreversível do tecido produtivo só podem travadas com despesa e investimento públicos dirigidos para a renovação e modernização dos transportes e equipamentos públicos, para os serviços sociais intensivos em trabalho, para as energias renováveis e para os sectores industriais que vale a pena promover. Despesa para garantir uma economia mais igualitária e produtiva no futuro. De qualquer forma, em tempos de crise, pode e deve combater-se o desperdício que alimenta a indolência dos grupos económicos rentistas. Comece-se o árduo trabalho de eliminação das parcerias público-privadas, engenharia neoliberal intrinsecamente opaca e ruinosa para os contribuintes. Em conjunto com o fim das míopes privatizações de monopólios e com a eliminação da generalidade dos custosos benefícios fiscais – promotores do egoísmo mercantil na saúde, na educação ou nas reformas –, esta escolha política traçaria as linhas orçamentais que enviariam os sinais certos à economia: os privados devem deslocar-se cada vez mais para os sectores de bens transaccionáveis e deixar de parasitar a esfera da provisão pública.

E um orçamento também tem um lado da receita, parte de um multiplicador da igualdade a criar. Como se pode esperar que sejam vistos como legítimos os pedidos de mais sacrifícios salariais aos funcionários públicos se não se combater a injustiça fiscal? Introduza-se então um novo escalão de IRS de 45%, siga-se a recomendação dos peritos e taxe-se as mais-valias bolsistas e outros rendimentos de capital em 20%, tenha-se a coragem de ir para além das suas recomendações: um imposto sobre as grandes fortunas, um imposto sucessório bem desenhado, uma taxa de solidariedade a recair sobre os consumos conspícuos, uma taxa sobre os bónus dos gestores. Garanta-se que os bancos pagam uma taxa de IRC semelhante às restantes empresas e tire-se as implicações fiscais da sensata posição de Martin Wolf (via jugular), editor do Financial Times, sobre os desmandos da esfera financeira.

Assuma-se também que as contas bancárias não podem ser, muito menos em tempos de crise, um segredo de família. A crise aguça a propensão de muitos para a informalidade? Dote-se então a administração fiscal de todos, mas mesmo de todos, os instrumentos para fazer face ao egoísmo que corrói a moralidade fiscal. Tudo isto é questão de correlação de forças. Voltemos ao slogan socialista a recuperar: os ricos que paguem a crise. Também.

6 comentários:

  1. Bom texto.

    Os ricos que paguem a crise que criaram. Não me deixa de espantar como o controlo da comunicação social abafa o óbvio: as crises são geradas pelas assimetrias económicas criadas pelo capitalismo.

    A abusiva apropriação do rendimento do trabalho alheio juntamente com outros inúmeros mecanismos de enriquecimento injusto levam a que o mercado falhe. Não é o dinheiro que faz a economia, é a realidade que ele representa (trabalho, os bens) e a sua circulação pelos diversos agentes sociais. O facto de o dinheiro estar concentrado em minorias provoca a crise no sector produtivo que precisa de consumidores que não sejam somente consumidores de luxo.

    Não deixa de ser paradoxal que no capitalismo de livre circulação de capitais o dinheiro circule tão pouco entre os diversos agentes que efectivamente fazem com a engrenagem produtiva funcione. Os trabalhadores como um fardo, um custo ao qual este sistema económico veda a compensação justa pelo seu trabalho.

    Agrada-me imenso a ideia de um Estado empregador...e especialmente um Estado que empregue com qualidade para assim pressionar o mercado de trabalho (bem me desagrada usar a expressão "mercado de trabalho", mas efectivamente em capitalismo o trabalhador está sujeito à regras da oferta e da procura à semelhança das coisas) a adoptar as boas práticas.

    Não é ao acaso que os grandes alvos de contestação sejam os funcionários públicos e que cada vez mais o sector público nacional e local promova os contractos precários (que nem são contractos são prestações de serviços a recibos verdes). Se o Estado assumir para si políticas de emprego injustas, dá ao sector privado o balsamo que este precisava para tornar a excepção regra e tornar os contractos de trabalho com direitos uma miragem.

    É bastante simples, se o sector privado não cria condições de emprego e remunerações justas, cabe ao Estado, órgão eleito democraticamente por todos, garantir um direito consagrado na carta dos direitos humanos: o direito ao emprego.

    Artigo 23.º

    1. Toda a pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha do trabalho, a condições equitativas e satisfatórias de trabalho e à protecção contra o desemprego.


    Subscrevo a necessidade de as contas deixaram de ser "um segredo de família". Constato contudo as imensas resistências à medida. Quase sempre com a ameaça de fuga de capitais e com o argumento falso e populista de que só os mais pobres e classe média seriam visados pela medida. Para já, não é o meu espanto quando oiço neoliberais "hardcore" preocupadinhos com as classes menos abastadas, segundo o argumento é falso porque é precisamente através da quebra do sigilo bancário que o Estado pode combater a fuga para os paraísos fiscais. É preciso perceber que na economia real não existem pagadores incógnitos, logo os off-shores só servem o seu propósito se conseguirem reintroduzir dinheiro sujo (branqueamento) nos sistemas financeiros comuns. Através da quebra do sigilo bancário é possível "isolar" os off-shores, ou seja negar a saída de capital para os mesmos e recusar a sua entrada. Pode parecer paradoxal, mas o mundo do crime económico só é rentável se existir um mundo de não crime económico. Porque a mais valia do crime económico reside no seu regime de excepção, se o Estado conseguir controlar os seus fluxos internos de capital consegue também manter o dinheiro sujo fora da economia real. Consegue assim combater um dos principais propósitos dos paraísos fiscais, ser um veículo de passagem do dinheiro do crime para a economia corrente.

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  2. (para além do slogan que continua actual, que o capitalismo não é história de amor)

    São boas as escolhas aqui postadas para quem quer uma democracia plena, a dificuldade reside na vontade política dos eleitos.

    “Comece-se o árduo trabalho de eliminação das parcerias público-privadas…”.
    Veja-se o “case study” - Estradas de Portugal (EP), cujo estatuto se mostra bastante dúbio: de capitais públicos, mas de direito privado! Ou seja, é alimentada pelo erário público, mas depois pretende-se gerida de forma privada…
    Chegou-se a tal ponto, que a decisão do Tribunal de Contas (TC) na recusa do visto à adjudicação de três auto-estradas, já não é só contestada pela EP, mas também pelo construtor…Os queixosos EP e Mota-Engil (só faltava aqui a banca) já estão lado a lado no mesmo barco!
    Em situação normal, e dado que as “condições iniciais e finais do concurso já não eram as mesmas”, o concurso devia ter ido simplesmente abaixo! Igualdade para todos. Mas não, o incontornável secretário de Estado, senhor Paulo Campos, parece estar interessado em “enginheirar soluções”. Cansativo.

    Acho imperioso que o planeamento seja efectivamente desenvolvido pelo sector público estatal, que os princípios que norteiam os concursos públicos voltem a ser, pelo menos (!), o que já foram em tempos, convocando sempre mais transparência. É preciso haver efectivas comissões de análise e acompanhamento, preferencialmente sorteadas, pois aqui não se trata de gerir negócios/empresas das famílias A ou B, muito menos de pandilhas.
    E deixem o TC trabalhar…mais e de forma consequente.

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  3. «As contas bancárias não podem ser, muito menos em tempos de crise, um segredo de família» - diz o João Rodrigues. Creio que exagera embora eu admita que estivesse a pensar em certo tipo de contas que falta caracterizar. Não é por nada mas assim a sêco faz-me pensar em radicalismos de consequências muito perversas para a Esquerda política, desde a URSS de Staline até ao 25 de Novembro...

    Fique claro que não confundo o João Rodrigues com tais propósitos e é por isso mesmo faço esta observação.

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  4. António:

    Espanha, a Finlândia, a Alemanha e os EUA...já permitem o acesso do fisco às contas bancárias.
    Não me parece, de todo, que se tenham transformado em ditaduras soviéticas...bem pelo contrário.

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  5. "cabe ao Estado, órgão eleito democraticamente por todos, garantir um direito consagrado na carta dos direitos humanos: o direito ao emprego."

    acho que sim. pode começar por arranjar trabalho na agricultura nos campos abandonados aos do rsi ; pode também dar emprego de trolha , electricista , canalizador , eng.civil e tal na única empresa pública que fazia realmente sentido : uma construtora. os funcionários da rtp podiam fazer um upgrade...

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