segunda-feira, 20 de julho de 2020

Sim, desconfinámos e ainda não há vacina

1. No acompanhamento mediático da evolução da pandemia em Portugal sobressai um tom que oscila entre, no melhor dos registos, a inquietação pelo facto de os novos casos não estarem a descer e, nos registos mais alarmados e pessimistas, a persistência da ideia de que o país está a regredir no controlo da doença, como se rumasse aos níveis de crescimento registados na fase inicial.

2. Para estes registos mais sombrios contribuem, claro, os focos de contágio na AML, que evidenciam o impacto assimétrico da pandemia e revelam problemas estruturais de contexto, bem como o fecho de fronteiras a cidadãos portugueses e o desanconselhamento de viagens a Portugal por parte de alguns países europeus, em regra assentes na comparação do número de novos casos (o menos fiável de todos os indicadores, por razões a tratar num próximo post).

3. Contudo, quando se analisa a evolução da pandemia através dos indicadores disponíveis, constatamos que subsiste um claro problema de perceção. De facto, não só o aumento do número de infetados e de novos casos é ligeiro e tende para a estabilização, desde que se iniciou o desconfinamento, como a tendência mais recente, em termos de internamentos e de óbitos, tem sido de decréscimo (sobretudo desde o final de junho).


4. Não existe margem, de facto, para dizer que a pandemia está descontrolada ou que se regista um regresso aos níveis de contágio e de impacto iniciais. De um «pico» de 803 novos casos diários no final de março, passou-se para 188 no final de maio, situando-se agora esse valor nos 327, em pleno contexto de desconfinamento. Mais relevante ainda, a tendência recente do número de internados e de óbitos é decrescente e está longe de corresponder à registada antes do «pico». Desde que se atingiu o valor mínimo em cada um destes indicadores (em resultado do confinamento), o aumento médio diário é de apenas +1,9 no caso dos internados e +0,1 no caso dos óbitos.


5. Em suma, a menos que se pudesse esperar que o desconfinamento não implicasse um aumento do número de novos casos, ou que a pandemia pudesse desaparecer sem ser necessária a existência de uma vacina, os dados recentes contrariam muitas das perceções que se foram formando, no espaço público, relativamente à evolução da pandemia. Sim, entrámos em desconfinamento e ainda não há vacina, pelo que a evolução registada até agora não andará longe do que se poderia esperar e inclusive, face às reais circunstâncias, desejar.

domingo, 19 de julho de 2020

Fundos europeus: regras, mas só para alguns?

Questionado sobre as negociações na União Europeia, Rui Rio juntou-se à Holanda e disse estar "do lado dos que querem regras" para o acesso aos fundos europeus. As regras a que se refere são as que foram colocadas em cima da mesa pelo governo holandês: flexibilização laboral e reforma do sistema de pensões para abrir a porta aos privados.

Não é preciso dizer que estas reformas estão longe de ser prescrições neutras. Elas derivam do mesmo quadro ideológico que esteve por trás dos programas de ajustamento da troika após a última crise. Também não é preciso recordar o fracasso dessa estratégia, seguida com empenho pela coligação PSD-CDS, que acentuou a recessão e degradou as condições de vida no país.

Mas os problemas não terminam aqui. É que há quem não deixe de notar a singularidade de um debate europeu em que se critica a suposta "rigidez" do mercado de trabalho dos países do Sul, mesmo depois de anos de desregulação, ao mesmo tempo que se omite o dumping fiscal levado a cabo por países como a Holanda, responsável por captar mais de €10 mil milhões anuais de receita fiscal pertencente a outros países da UE. Paul de Grawe resume-o de forma clara: "a Holanda rouba milhares de milhões de receita fiscal dos mesmos países aos quais exige melhor comportamento".

Um debate sério sobre os fundos europeus não pode resumir-se às contribuições líquidas de cada país para o orçamento comunitário. É preciso lembrar os ganhos desproporcionais que os países mais ricos têm com o acesso ao mercado único, reconhecidos pela própria Comissão Europeia, e as assimetrias da moeda única (sub-avaliada para uns, favorecendo as suas exportações, e sobre-avaliada para outros, penalizando-os). Contudo, neste caso, podemos começar pelo mais simples: tributar as empresas nos países onde exercem atividade e pôr termo à hipocrisia holandesa. Caso contrário, reforça-se a ideia de que, na União Europeia, só existem regras para os países mais fracos.

Inimigo público nº1

Porque hoje é domingo e porque estamos num momento em que se fala - de novo - em bancos, eis a história de quem fez toda uma vida a tentar dar uso - de outra forma - às intenções de Roosevelt de parar os desmandos da banca em plena depressão dos anos 20. Por acaso, a formulação usada por  Roosevelt (5m18) viria a ser usada por ele, em 1941, contra o advento belicista de Hitler. Ele há forças que levam uma pessoa a usar palavras e meios radicais.

Depois deste famoso caso contado no filme, muita coisa evoluiu. Nessa altura, roubava-se bancos sem roubar os depositantes, assaltando-os; presentemente - de acordo com o Ministério Público - os roubos fazem-se, arranjando um lugar nas suas administrações, roubando directamente os depositantes. É mais eficaz, poupa-se nas munições e, feitas bem as coisas, continuar-se-á a ser o inimigo público nº1 da sociedade, apesar de ser o sistema nervoso das democracias que se dizem liberais.



sábado, 18 de julho de 2020

A pandemia é uma crise simétrica?

Os dados divulgados no último relatório do Instituto Nacional de Estatística (INE) traçam o retrato das 19 freguesias da Área Metropolitana de Lisboa (AML) que continuam em estado de calamidade, dado o elevado risco de contágio. Nestas freguesias, que se distribuem entre Amadora, Odivelas, Sintra e Loures (e 1 em Lisboa), vive mais de um quarto da população da área metropolitana. Vale a pena olhar para os números, já que contam a história de uma crise que está longe de ser simétrica.

A primeira diferença assinalável entre as regiões é a da densidade populacional: nas 19 freguesias confinadas, é sete vezes superior ao resto da AML. Além disso, as casas são geralmente mais pequenas e os casos de sobrelotação são bastante mais comuns - basta ver que a proporção de edifícios com 7 ou mais alojamentos é substancialmente superior nas 19 freguesias afetadas (30,6%), face à restante área metropolitana (13,9%). Percebe-se a relação que existe entre estas características da periferia de Lisboa e a evolução demográfica do país, que levou cada vez mais pessoas a deslocar-se para a AML nos últimos tempos. Percebe-se, também, que as condições de habitação são determinantes para o risco de contágio.

Por outro lado, ao contrário do que tem sido sugerido pelo Governo, a utilização dos transportes públicos também parece ser relevante. O relatório do INE nota que "No território em estado de calamidade, a proporção de deslocações com utilização do transporte público para fora do município é 14,0%, mais do dobro do observado no restante território da AML (6,7%)". É difícil negligenciar uma diferença tão expressiva quando se analisa a evolução da pandemia.

A combinação das condições habitacionais precárias com a necessidade de manter as deslocações (por se tratarem de pessoas que desempenham serviços essenciais, geralmente mal pagos, ou que precisam de procurar trabalho) só podia ter este resultado. Estes dados, aliás, estão em linha com o que foi sendo conhecido através das reuniões no Infarmed, nas quais, por exemplo, se ficou a saber que os imigrantes são desproporcionalmente afetados pelo vírus (são 1/4 dos infetados em Lisboa e 16% no Porto). É cada vez mais notório que a pandemia não afetou todos da mesma forma e está a expor as desigualdades. Nesse sentido, os dados divulgados confirmam o que já se sabia: a precariedade e a exclusão social são mesmo fator de risco.

sexta-feira, 17 de julho de 2020

Chega mesmo de apologias


Tomando como ponto de partida uma entrevista televisiva a Riccardo Marchi, um grupo de investigadores em ciências sociais e humanas publicou no passado Sábado um texto contra esta “higienização académica do racismo e fascismo do Chega”. A entrevista é coerente com o livro, naturalmente.

Em reacção, Luís Pereira Coutinho informou-nos, também no Público, que o tal grupo era composto por 67 investigadores e partiu daí para uma defesa banal de um debate público vivo e plural. Nem por uma vez se engaja com os argumentos apresentados. Coutinho sabe contar e é praticamente tudo. Já no bem financiado blogue das direitas puras e duras, também conhecido por Observador, Rui Ramos acha que aquela tomada de posição democrática deve ficar ao lado da expulsão de académicos da universidade no tempo do fascismo, o que é coerente com as décadas de relativização e de branqueamento que já leva, do miguelismo em diante.

Colectivamente, o combate ao fascismo passa pela cabal aplicação da Constituição, proibindo formações desta natureza, mas também passa pela superação da impotência democrática do Estado nacional no campo das escolhas socioeconómicas. Já do ponto de vista da circulação académica ou no restante espaço público, não há alternativa à sujeição das ideias a um apertado escrutínio crítico. Um livro apressado, alinhando com as ideias do Chega e editorialmente oportunista sobreviverá pior desta forma. E isto incomoda muitos intelectuais das direitas. Já não escondem as tentações, as mesmas que levaram liberais como Ludwig von Mises, uma das referências explícitas do Chega no campo da economia, a saudar o fascismo italiano nos anos vinte por ter salvo o princípio da propriedade privada. Toda uma tradição a que convém estar atento sobretudo nas curvas apertadas da história.

Entretanto, António Costa Pinto diz na badana que é um livro “sério” e “desapaixonado”. É precisamente o contrário, como já argumentei numa primeira versão de uma recensão: aliás, se eu fosse dirigente da extrema-direita, aconselharia o livro aos militantes. E se a paixão de Marchi fosse assumida de início, ao invés de ser traficada no porão da isenção, poderíamos discutir noutro plano as questões da seriedade.

quinta-feira, 16 de julho de 2020

Poucos, dos muito poucos que têm muito


«Provocou alguma comoção que um grupo de 83 multimilionários tivesse apelado a que seja aplicado um imposto sobre as fortunas para financiar a resposta à covid. É caso para tanto. Pedem um imposto “imediato, substancial e permanente”, escrevem que não querem doar à caridade, pois preferem que sejam os Estados a receber a coleta e a aplicá-la segundo as prioridades da saúde pública, e que a razão é simples: “temos dinheiro, montes dele”, e é preciso para os serviços médicos. Tudo boas razões. Mas, quando se verifica quem são os signatários e a viabilidade da sua proposta, chega a desilusão. Bem sei que na lista está a herdeira Disney e um dos fundadores do Ben & Jerry, mas o resto são pequenos multimilionários. Os grandes não se juntaram ao peditório. Jeff Bezos, da Amazon, saltou com a pandemia de 75 mil milhões para 189 mil milhões de dólares, a empresa disparou em Bolsa, mas não consta da lista. Ambani, o homem mais rico da Índia, disparou para 75 mil milhões mas não está entre os proponentes. Warren Buffett, um dos especuladores mais bem sucedidos das últimas décadas, que escrevia que a sua secretária pagava uma taxa de IRS maior do que a dele, também não.»

Francisco Louçã, Não se assuste, eles são só 0,0167%

quarta-feira, 15 de julho de 2020

Quem faz o que quer, quem manda?


A jornalista Cristina Ferreira continua a escrever a história do Novo Banco, um caso de predação financeira incentivada publicamente, sugerindo, com cada vez mais força, um padrão: “Até ser nomeado chairman do Novo Banco, Byron Haines liderou um banco detido pelo fundo Cerberus. Foi a este fundo que o banco vendeu 200 imóveis com uma perda de 328 milhões de euros.”

A coisa é de tal ordem que Manuel Carvalho decidiu, por uma vez, começar a olhar para esta forma de economia política tal como ela é, sugerindo que os portugueses, geralmente alvo de tentativas de ofuscação ideológica, “têm todas as razões para começar a suspeitar que são tratados como cidadãos de uma república das bananas onde a alta finança faz o que quer”.

A alta finança faz realmente o que quer em demasiadas esferas. Por falar nisso, a jornalista Fernanda Câncio escreveu, uma vez mais, sobre a tal “faculdade muito pouco pública”: “Direção da faculdade de Economia da Universidade Nova [Nova SBE] implica exclusividade mas Daniel Traça é administrador do Banco Santander, um dos mecenas da escola, tendo auferido 143 mil euros em 2019.”

Perante estas e outras novidades, Jorge Bacelar Gouveia, professor da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa e antigo deputado do PSD, escreveu ontem o seguinte: “Já sabíamos que o poder económico ‘mandava’ no poder político, não obstante a Constituição dizer o contrário no seu art. 80.º. Agora ficámos a saber que o poder económico também ‘manda’ no poder académico!”

A questão central na economia política é hoje cada vez mais clara, também graças ao bom jornalismo em tempos financeiros: quem manda, quem faz o que quer e quem está exposto, submetido, a esse mando, a essa liberdade?

terça-feira, 14 de julho de 2020

Uma década perdida

Os dados da população residente em 2019, divulgados há dias pelo INE, confirmam a tendência cumulativa de esvaziamento demográfico do interior norte e sul, com perdas acima dos 6% na última década e que chegam a superar os 10% no Alto Alentejo. Aliás, em boa verdade, o dado mais relevante a reter neste período é a confirmação de que apenas a Área Metropolitana de Lisboa (AML) não perde população, registando um aumento de 1,3% e confirmando o «crescimento unipolar» de que fala José Reis no seu mais recente livro, «Cuidar de Portugal».

Esta é de resto uma das principais diferenças quando se compara o período entre 2011 e 2019 com a década anterior. Se entre 2001 e 2011 se registam aumentos da população em praticamente todo o litoral e no Algarve, numa clara lógica de litoralização, a dinâmica subsequente é a da tendência para a concentração unipolar na AML. Ou seja, depois do afluxo de população do interior para todo o litoral, a AML parece absorver, na fase seguinte, uma parcela demográfica desse mesmo litoral. Cumulativamente, o resultado é claro: nas últimas duas décadas todas as NUT do interior registam perdas acima de 10% e a faixa litoral não metropolitana, a par do Algarve, entra em declínio.


Os anos do «ajustamento» obrigam, contudo, a considerar duas fases distintas no período de 2011 a 2019. Usando a mesma escala de variação, não há nenhuma NUT que tenha registado um aumento da sua população entre 2011 e 2015, mesmo que as perdas tenham sido menores (abaixo de 3%) nas áreas metropolitanas e nas NUT mais próximas. Entre 2015 e 2019 já não é assim, regressando as áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto às variações positivas, com ganhos inferiores a 3%. O que não impede, como é óbvio, que continuemos a ter que falar no acentuar de desequilíbrios regionais, nas perdas continuadas de população no interior e em parte do litoral e Algarve, a par do reforço da metropolização (sendo que, ao longo da década, apenas a AML regista uma evolução demográfica positiva).


Apesar das dinâmicas recentes, de unipolarização (AML) e de declínio da rede de cidades médias, que importa não desvalorizar, a fratura entre litoral e interior continua a ser o traço mais saliente dos desequilíbrios regionais à escala do continente. A consciência dessa fratura foi-se aliás tornando cada vez maior, alimentando sucessivas proclamações de «combate à interioridade», a par da adoção de medidas na maior parte dos casos superficiais ou avulsas que, não há como não o reconhecer, não conseguiram até hoje inverter a situação. Bem pelo contrário, como demonstra a evolução nos quase últimos vinte anos, a mais recente década foi, deste ponto de vista, uma década perdida.

domingo, 12 de julho de 2020

Humanizar


A pandemia não é, infelizmente, um episódio de curta duração. E à da COVID-19 podem seguir-se outras, se não invertermos as políticas que estão a destruir ecossistemas e a ameaçar o planeta. A pandemia revela e intensifica tudo o que não estava bem antes da sua irrupção. No caso de Portugal, as desigualdades, a pobreza, a dívida, ou a injustiça laboral, fiscal e social, organizadas por décadas de enfraquecimento dos poderes públicos e do Estado Social. O que vai acontecer, neste momento em particular, se não actuarmos sobre as causas estruturais das desigualdades que ameaçam, cada vez mais, a coesão social e territorial? Quais as consequências, num país crescentemente polarizado, de aprofundar fracturas com cenários de guerra povoados por inimigos, chefes ordeiros e outros que não sabem impor a ordem, ou soldados mobilizados para o terreno? Vai-se identificar quem é «carne para canhão», ou parte-se para metáforas de guerra esperando que elas sejam limpas? A guerra desumaniza. A democracia humaniza. A democracia tem de garantir as condições estruturais para os seres humanos viverem vidas dignas e em igualdade de oportunidades. Tem de ser exigente consigo própria e com os seus cidadãos, convocando-os, tanto mais quanto maior é a crise, para fazer escolhas informadas e que tenham em conta, sem falsos consensos, o interesse comum.

Sandra Monteiro, Metáforas bélicas, Le Monde diplomatique - edição portuguesa, Julho de 2020.

Deixo ainda outro excerto, desta vez do resumo de um número com uma capa bem sugestiva: “Na edição de Julho destacamos um extenso dossiê, repleto de infografia, sobre os impactos sociais, ambientais e económicos do turismo à escala global. Os seus novos desafios, em contexto de pandemia, atingem em particular os países que dele se tornaram mais dependentes. O Sul da Europa acumula, novamente, fragilidades, como se pode ler na análise de Luís Mendes ao caso português, e o mesmo acontece com a Grécia, Itália, etc. Dossiê: ‘Turismo, ano zero.’”

sexta-feira, 10 de julho de 2020

Chega de apologias

Riccardo Marchi convoca a autoridade de ter andado a estudar a extrema-direita nacional durante mais de uma década e meia dúzia de pinceladas de ciência política convencional, com o seu cortejo de economicismos, do mercado político à oferta e procura políticas, passando pelos incentivos, para nos servir o que não passa de uma muito mal disfarçada apologia do Chega.

De facto, o livro pouco ou nada acrescenta de relevante ao que na imprensa se tem escrito. Pelo contrário, as melhores reportagens de investigação sobre este partido, por exemplo as de Miguel Carvalho na Visão, são reduzidas ao estatuto de “boatos mediáticos”, parte de uma campanha da imprensa, e substituídas por profusas declarações dos seus dirigentes. Não se passa nada.

Vale de resto tudo para normalizar o Chega, contestando a sua filiação na extrema-direita, secundarizando a questão do seu financiamento ou as suas ligações internacionais. Neste último campo, insiste-se convenientemente no enraizamento e singularidade nacionais do Chega, fruto de múltiplas confluências político-ideológicas. Realmente, não convém dar demasiado destaque às ligações aos evangélicos bolsonaristas ou ao trumpismo nesta fase pandémica.

Dividido em três partes – o líder, o partido e as ideias –, o livro de Marchi garante-nos sem mais que André Ventura “testemunhou a humiliação de ser vítima de assaltos e da subsiodependência” (p. 33); a par do combate ao “politicamente correcto”, esta é uma das razões aduzidas para um discurso que nada teria de racista sobre os ciganos em Loures, a sua oportuna rampa de lançamento. Pelo contrário, Ventura até teria usado um misterioso estudo, que não é referenciado, mas que é aparentemente tomado por bom pelo autor, segundo o qual só 15% dos cidadãos de etnia cigana viveriam do seu trabalho. O resto é racionalidade instrumental e encontro da oferta e da procura. É assim que se faz um líder e que se constrói uma narrativa.

A técnica do livro consiste em tomar por boas as opiniões de dirigentes do Chega, recolhidas em entrevistas, aceitando de tal forma os seus próprios termos, e misturando-os com as opiniões do autor, que o leitor a certa altura já não sabe quem é o emissor: “No tema da educação, denuncia principalmente o marxismo cultural. Aqui, o partido combate a chamada ideologia de género implementada à socapa na escola pública” (p. 94). São muitas as formulações deste tipo da autoria de Marchi.

“Direita anti-sistema”, termos do Chega e do autor, é aliás todo um programa de apologia de um partido que quer assumidamente purificar o único sistema que eu conheço, o capitalista, expurgando-o de concessões colectivistas. Trata-se de procurar enraizar o autoritarismo neoliberal, através de um estilo populista dito triádico.

Diogo Pacheco de Amorim, ideólogo do Chega e antigo membro de uma organização terrorista da extrema-direita, que também não deve ser racista, mas sim de centro-direita, e que vem oferecer aquilo que muitos procuravam, escreveu na página deste partido o seguinte: “Bem-vindos os de todas as raças desde que respeitem a nossa raça (…) Não queremos os qualquer-coisa-Khan que um dia perto do nosso Natal puxam de uma faca e desatam a assassinar pacíficos transeuntes”. Esta citação não vem no livro de Marchi. Ficava mal, certamente, na fotografia.

Pacheco de Amorim que se cuide. Tem concorrentes mais sofisticados no campo da ideologia.

quinta-feira, 9 de julho de 2020

O insustentável peso de deixar cair


Para quem não assistiu, vale mesmo muito a pena ver o Choque de Ideias da passada segunda-feira, na RTP3, onde Ricardo Paes Mamede e Fernando Alexandre discutiram a questão da TAP (a partir do minuto 26'45''). Com todas as dúvidas que se possam ter sobre a melhor opção e o futuro da companhia, há um ponto que fica bastante claro no debate: quer pela importância que a TAP tem para economia portuguesa, quer pela necessidade de criar condições para equacionar as decisões de fundo, inerentes ao seu redimensionamento e adaptação às novas realidades da aviação civil, a falência da TAP seria a pior solução entre todas as que foram sendo colocadas, desde o início, em cima da mesa.

Há aliás um ponto importante, assinalado por Ricardo Paes Mamede, que tende a ser ignorado pelos que recusam a solução adotada - sem que apresentem propostas alternativas devidamente fundamentadas - e defendem, com a ligeireza de uma conversa de café, deixar cair a companhia: a falência não seria indolor, não seria uma «poupança» sem custos, verificando-se desde logo ao nível da litigância (e que também existiriam no caso de nacionalização forçada). A acrescentar, claro, a custos com os despedimentos em massa e prejuízos das empresas que perderiam contratos, de fornecedores que ficariam sem receber e do impacto imediato na atividade do setor. Nas palavras de Paes Mamede, «independentemente daquilo em que acreditemos, sobre se faz sentido ou não ter a TAP a funcionar em Portugal, ou se podemos dispensá-la, não podemos deixar de ter presente que a falência pura e simples da TAP, neste momento, implicaria custos que provavelmente ninguém que faça algumas contas está disposto a pagar».

Para lá dos custos associados à falência, que obrigam a encarar de outro modo a injeção de 1,2 mil M€ e a aquisição da participação de Neeleman, importa ter noção do que significa realmente a TAP para a economia portuguesa. Não são só os cerca de 10 mil trabalhadores (a que corresponde uma receita anual de 300M€ em impostos e contribuições). São também os cerca de 1,3 mil M€ em compras a mais de mil empresas nacionais, ou a faturação de 3,3 mil M€, que se traduzem em 2,6 mil M€ em exportações. O próprio Fernando Alexandre, cético face à solução adotada, reconhece que a TAP tem «uma estrutura muito enraizada na economia portuguesa, e por isso é tão importante e tão difícil saber o que é que aconteceria se ela fosse à falência. (...) Embrenhada no sistema produtivo português, tem uma rede de fornecedores, dá imenso emprego, ou seja, é uma empresa que tem um peso muito grande, não há dúvidas nenhumas sobre isso. Se nós quisermos de facto reestruturar a TAP, nós temos que saber no que é que nós estamos a mexer». Ora, é justamente isso que o acordo também permite: criar condições para encontrar o melhor modelo e a melhor escala, num processo que será sempre, do ponto de vista do Estado, de reestruturação estratégica.

É já amanhã às 15h


Até ao final do ano, será publicado o 5º relatório anual do Observatório sobre Crises e Alternativas, sobre "Como reorganizar um país vulnerável?"

A pré-apresentação de cada capítulo, ordenada pelo nome dos autores, pode ser consultada AQUI.

Participe nesta zoom-conferência que o antecipa. É já na próxima 6ªfeira, às 15h, com José Reis, Álvaro Garrido e Mariana Canotilho, moderados por Nicolau Santos.


quarta-feira, 8 de julho de 2020

O tempo das decisões fáceis: rendas seguras, rendimentos garantidos

Depois de promoverem ativamente o turismo e de assistirem impávidos e serenos à expulsão dos seus munícipes para os subúrbios das duas áreas metropolitanas, os autarcas de Lisboa e do Porto procuram, agora, trazê-los de volta.

Em Lisboa, o programa Renda Segura, no Porto, o programa Porto com Sentido, visam atrair para o mercado de arrendamento os imóveis até aqui destinados ao alojamento local. Replicando a lógica do Programa de Rendas Acessíveis (PRA) do governo, as duas principais autarquias propõem-se arrendar estes imóveis para os subarrendar a preços acessíveis aos munícipes.

Em Lisboa, prevê-se um investimento de 4 milhões de euros para financiar 1000 contratos de arrendamento por ano; no Porto, por sua vez, contempla-se um investimento total de 4,3 milhões para colocar também 1000 novos alojamentos no mercado de arrendamento até 2022. Em tempo de crise, procura-se atrair os proprietários dos imóveis desertos de turistas com o pagamento pontual de rendas e aliciantes benefícios fiscais, com o apoio do Estado, que pode comparticipar 50% da diferença entre a renda paga ao proprietário e a renda recebida do inquilino, num investimento previsto de 4,5 milhões de euros. Já a verba não coletada por via da isenção de tributação em sede de IRS/IRC poderá ascender aos 12,9 milhões de euros.

Nem Rui Moreira, nem Fernando Medina, revelaram grande preocupação com a evolução recente do preço das rendas para valores incomportáveis para os seus munícipes. Ainda em Fevereiro deste ano, Medina defendia a extensão do modelo de desenvolvimento urbano assente no turismo a outros municípios da área metropolitana. Agora que não há turistas, e com eleições à porta, lembra que o alojamento local ocupa “mais de um terço das propriedades no centro da cidade de Lisboa, aumentando os preços de arrendamento, afastando as comunidades e ameaçando o seu carácter único”.

Contudo, é pouco provável que estas medidas consigam reverter as tendências dos últimos anos agora tão bem descritas por Medina, não sendo expectável que, mesmo nas atuais circunstâncias, os proprietários queiram assumir um compromisso de longo prazo. Se, por um lado, a meta dos 1000 alojamento representa apenas 5% dos imóveis colocados no mercado de alojamento local. Por outro lado, ainda esta semana, a Secretária de Estado admitia que o desempenho do PRA está muito aquém das expectativas, não tendo sequer chegado aos 300 alojamentos desde a sua implementação há cerca de um ano.

Além de ineficazes e iníquas, estas medidas não deixarão qualquer lastro. Enquanto durarem, os subsídios e isenções fiscais garantem rendas seguras aos proprietários por forma a que os inquilinos beneficiem do privilégio supremo de pagar as rendas que o seu rendimento permite. O efeito deste investimento no reforço do parque habitacional municipal ou nacional será nulo.

terça-feira, 7 de julho de 2020

Têm todos mais encanto...


Depois de anos a insistir no cumprimento cego das metas orçamentais europeias, Centeno deixa um aviso para os riscos da sua própria abordagem. À saída é fácil.

A Nova SBE não é o Welton College


«Com questões desta magnitude em causa - que raio de faculdade pública é esta em que os contratos de patrocínio são secretos, o diretor é administrador de um dos bancos mecenas e um professor aparece numa campanha publicitária do banco que paga a sua cátedra? - que um "conselho restrito de catedráticos" se tenha atrevido a deliberar sobre se os professores podem assinar opinião referindo a ligação à faculdade, como se esta fosse uma "marca" que lhes pertence, parece gozo. Mas infelizmente não é: sendo certo que tal decisão, por tão ridícula e ilegítima, nunca poderia implicar consequências disciplinares - aliás, Susana Peralta continuou e bem a assinar como antes -, o objetivo foi condicionar e mostrar quem manda. Trata-se na verdade de uma "expulsão simbólica", que faz saber à visada que na Nova SBE não irá longe. Chama-se a isto "estalar o chicote".»

Fernanda Câncio, Nova SBE, uma faculdade muito pouco pública

«Gostam também de se apresentar como pessoas que estão acima dos conflitos de interesses. A Faculdade de Economia propõe opiniões que não são "emocionalmente comprometidas", clama Ferreira Machado, para quem a Nova oferece "um ponto de vista informado, mas independente", que "não está submetido a nenhum lóbi". Apesar desta pretensão à levitação social e ideológica, os docentes reconhecem que na faculdade há um consenso. "A nível conceptual", observa Ferreira Machado, "estamos de acordo sobre a necessidade de se aumentar a produtividade, sobre o comércio livre, a reforma do mercado de trabalho, o incremento da competitividade e o papel do Estado. Os desacordos dizem respeito à estratégia a curto prazo. Mas navegamos todos na mesma direcção". Quando se lhe pergunta se na Nova há, por exemplo, keynesianos, responde com uma gargalhada.»

Owen Jones, Em Portugal, a universidade do consenso

«Como se lê no artigo da Sábado, na referida reunião, Susana Peralta foi referida como estando a gerar uma associação da marca, a Nova SBE, a posições políticas “desagradáveis” e “de esquerda”, contrariando a matriz liberal da Nova. Irónico. (...) E, então, a surpresa e a confusão deram lugar à tristeza. Tristeza por ver que, na minha alma mater, não se acolhe o pluralismo, embora no site a palavra “diversidade” venha várias vezes referida com uma conotação positiva. Quando se assume que há liberdade de pensamento numa instituição, nunca as posições assumidas pelos seus elementos podem ser tomadas pela matriz da organização. É mera questão de lógica. Que é especialmente verdade no contexto da Academia, onde os professores gozam, estatutariamente, de autonomia pedagógica e científica.»

Vera Gouveia Barros, O que tanto incomoda a Nova SBE?

«Esta limitação à liberdade académica condena o saber que devia alimentar o poder público nas suas decisões. Condena o rigor da informação que é veiculada pela imprensa por especialistas destas instituições académicas. Condena a formação dos quadros que tomarão decisões no Estado e nas empresas. Condena toda a comunidade a um saber amputado por quem tem dinheiro para financiar um campus à beira mar. A não ser quando aparece uma carta fora do baralho. Numa academia livre isso não seria problema, seria uma vantagem. O incómodo com os artigos de Susana Peralta é só a parte mais patética, menos relevante mas mais reveladora do ponto a que os limites impostos pela mercantilização das universidades públicas chegou.»

Daniel Oliveira, Não há campus grátis

Veio-me à memória o «Clube dos Poetas Mortos» (e mais concretamente o excerto ali em cima), a propósito do caso «Nova SBE / Susana Peralta». O pluralismo e sentido crítico no ensino da Economia é das questões mais importantes, entre as várias que o episódio suscita. Constitui aliás o corolário da peculiar trajetória desta instituição, aqui assinalada pelo João Rodrigues e ponto central no artigo de Daniel Oliveira, que merece ser lido na íntegra (clicar em «Ler mais», no final do post, para aceder à transcrição completa). Não é suposto, de facto, que a criação e afirmação de uma «escola de pensamento», no ensino superior público, se faça por lógicas de confinamento curricular e afunilamento epistemológico. E, menos ainda, pela exclusão e perseguição da diferença, que esvazia o debate e empobrece qualquer instituição. Que uma privada o faça, é com ela. Numa pública, não se admite.

segunda-feira, 6 de julho de 2020

Os doutores Salgado e Mexia: fantasmas de um flirt passado do ISEG


A última semana trouxe a debate a crescente ingerência do dinheiro das grandes empresas privadas na universidade pública. O tema veio a discussão na sequência de uma notícia na revista Sábado, que dava nota da tentativa, por parte do conselho de catedráticos da NOVA SBE, de impedir que os seus docentes indicassem a sua filiação institucional nos seus artigos de opinião. A fixação da regra, soube-se, não era inocente. Susana Peralta, docente da instituição com afirmação crescente no espaço da opinião portuguesa, assinara um artigo onde criticava a EDP, importante financiadora do novo campus da faculdade.

Este episódio, chocante pelo que representa na ameaça da independência académica, é apenas a face mais visível de uma longa relação de proximidade entre os maiores interesses privados e políticos e a faculdade de economia da Universidade Nova, como bem assinalou João Rodrigues (aqui). No que se refere a esta faculdade, essa ligação é estrutural, representa a mimetização do modelo anglo-saxónico no contexto da universidade pública portuguesa e é uma ameaça ao ensino superior entendido como nivelador das oportunidades no contexto de uma sociedade democrática.

Aquando da saída da notícia, tive a oportunidade de elogiar o ISEG por, ao contrário de tentar impor o monolitismo de pensamento dos seus docentes, ter lançado uma publicação onde se orgulha da pluralidade de pensamento que alberga (aqui). Nessa publicação periódica são listados todos os artigos de opinião que os seus docentes assinaram nesse período, numa demonstração de valorização da intervenção cívica da academia no espaço público.

Mas reconhecer a virtude de ações presentes não pode deixar cair no esquecimento ações passadas cujos efeitos para a reputação das instituições se fazem sentir ainda hoje.

A suspensão de funções de António Mexia e João Manso Neto, por iniciativa judicial, torna oportuno lembrar que também o ISEG ensaiou a sua subjugação à pequena elite económica portuguesa.

Entre 2012 e 2013, o ISEG concedeu seis doutoramentos Honoris Causa. Quatro desses doutoramentos foram para figuras peculiares. Três foram concedidos a figuras que estavam então ligadas ao topo da estrutura da EDP. António Mexia, Presidente Executivo, Eduardo Catroga, Chairman, e António de Almeida, Presidente da Fundação EDP. O restante foi concedido a Ricardo Salgado, então Presidente do BES.

A escolha chocou porque constituía um corte profundo com os critérios que até então tinham sido definidos pela faculdade para a atribuição deste grau. Nos seus mais de 100 anos de história, o ISEG só havia atribuído esta distinção a personalidades de elevado prestígio internacional, tais como Tinbergen, Fraçois Perroux, Stiglitz ou Amartya Sen, ou nacional, caso de José Silva Lopes e Manuela Silva.

As razões para esta mudança de critério e para concessão de tão elevado número de doutoramentos honoris causa com estes contornos continuam um mistério. Mas há interpretações possíveis. A mais benigna sugere que se terá tratado de um deslumbramento ao discurso da modernidade que impunha uma maior ligação entre a universidade e a sociedade. Este discurso, embora tenha elevado poder persuasor junto de alguns setores, tem apenas o efeito de aumentar a vulnerabilidade das universidades públicas aos interesses privados que nela circulam. É falsa e enferma de uma ingenuidade típica daqueles que se rejeitam a ver as instituições como o que elas realmente são: espaços de permanente disputa de poder. A segunda interpretação, menos benigna, sugere que alguns dos responsáveis pela decisão aguardassem pequenas facilidades no plano do seu posicionamento empresarial e político vindos dessas figuras, que sabiam influentes. Esta interpretação, colocada em termos suficientemente crípticos para evitar acusações de difamação, não deve, porém, ser descartada.

Com os olhos do presente, sabemos os resultados desta decisão. O ISEG, uma instituição de elevado prestígio no ensino da economia em Portugal, tem uma mancha descredibilizadora sobre o seu nome, ao ver dois dos seus doutores honoris causa envolvidos em escândalos de corrupção. Essa mancha poderia ter sido evitada se os critérios de exigência para a atribuição deste grau se tivessem mantido durante esses anos.

Ufano e sem sinal de pudor continua o responsável maior pela atribuição destas distinções. João Duque, então presidente do ISEG, prossegue despreocupado a sua ação de papagaio-mor do reino, vertendo teses sobre os mais variados temas, em tom frequentemente moralista. Que não haja um jornalista que o confronte com o sucedido é um enorme mistério.

Se existem faculdades com uma relação duradoura com os interesses privados em Portugal, como a NOVA SBE, também há faculdades que têm sabido resguardar a sua independência, como o ISEG, mas que não estão isentas de flirts passados que mancham a sua respeitabilidade no presente.

Com efeito, e porque o que se atribui também se pode retirar, é urgente que o ISEG considere retirar os doutoramentos honoris causa que atribuiu a Ricardo Salgado e a António Mexia. Sob pena de se distinguir em mais um ranking internacional, desta vez como (provavelmente) a única faculdade cujos dois doutores honoris causa acabaram acusados em processos de corrupção.

Valor e linguagem


É sabido que existe uma relação próxima entre cultura, pensamento e linguagem. É famosa a história acerca de como as línguas Inuit, vulgarmente conhecidas como Esquimós, têm dezenas de palavras diferentes para referir a neve nas suas diversas variantes. Essa diversidade terminológica reflete os centros de interesses dessa cultura e, por sua vez, influencia o pensamento dos indivíduos que assim se expressam, uma vez que que, em cada contexto particular, estes não pensarão em “neve”, mas sim numa das suas dezenas de matizes particulares.

Esta história, tal como se vulgarizou, é algo imprecisa e exagerada, mas teve realmente origem nos trabalhos do pioneiro da antropologia Franz Boas entre os Inuit e influenciou realmente a teorização sobre estes temas segundo a linha do relativismo linguístico, que culmina na chamada hipótese Sapir-Whorf: não pensamos senão através da linguagem, e as particularidades desta determinam os nossos pensamentos e ações. Esta versão ‘forte’ da determinação do pensamento pela linguagem está hoje em dia bastante desacreditada, mas é difícil não dar algum crédito à versão ‘fraca’, mais modesta: a linguagem que usamos influencia a forma como pensamos.

Dei por mim a pensar nestas questões a propósito de um pormenor lexical que nos últimos anos tenho vindo a encontrar com cada vez mais frequência em língua inglesa, tanto nalguma comunicação social como em documentos produzidos pelo sector financeiro. Trata-se da expressão “High-Net-Worth-Individuals”, por vezes abreviada como HNWI, e que poderemos traduzir (visto que ainda não se generalizou por estes lados, creio) como “Indivíduos de Elevado Valor Líquido”. No fundo, não é mais do que uma forma mais contemporânea e críptica de designar os ricos ou os milionários, mas é interessante determo-nos para analisarmos este conceito, que aliás está associado à prática, em língua inglesa, de utilizar a expressão “to be worth” (valer) para designar o património detido por alguém. Por exemplo, como na frase “Bezos is now worth $140 billion, while Zuckerberg is worth $70 billion”, traduzível por “Bezos vale agora 140 mil milhões de dólares, enquanto Zuckerberg vale 70 mil milhões de dólares” (ênfase meu), retirada deste artigo.

Num pequeno livro notável intitulado Capitalisme, désir et servitude (disponível em inglês como Willing Slaves of Capital), Frédéric Lordon discute, entre outras coisas, a natureza do dinheiro como objeto de desejo. Nas suas palavras, “o dinheiro é a expressão subjetiva, sob a forma de desejo, da relação social monetária. (...) [Da perspetiva dos indivíduos, o dinheiro] transforma-se num objeto de desejo, ou de meta-desejo, uma vez que este objeto particular é o equivalente geral que dá acesso a todos os objetos (materiais) de desejo (...), produzindo um dos atratores mais poderosos de uma economia do desejo estruturada pela mercadoria”. Esta análise, apesar de se referir a questões que reconhecemos intuitivamente, é mais profunda do que poderá parecer à primeira vista: é na medida em que vivemos numa sociedade em que a satisfação de uma parte maioritária e crescente dos desejos é mediada por relações mercantis que o dinheiro se afirma com força crescente como objeto de meta-desejo. A glorificação do dinheiro como signo representativo da satisfação de todos os desejos é por isso tanto mais forte quanto mais total for o domínio da lógica da mercadorização em cada sociedade.

A expressão “High-Net-Worth-Individuals” e frases como “Bezos is worth $140 billion” condensam assim dois deslizamentos semânticos significativos: por um lado, a redução do valor dos indivíduos ao património que detêm; por outro, a conversão ou expressão do património à forma particular do seu equivalente monetário. Operando em conjunto, estas duas reduções convertem o valor do humano e dos humanos numa métrica dos desejos que, numa sociedade plenamente mercadorizada, cada indivíduo se permite a si próprio, ou a terceiros, aceder. O património individual converte-se em valor individual e especificamente em valor individual perante e para os outros, pois representa, significa, o feixe de desejos a cuja concretização potencial esse indivíduo está associado.

Julgo que estes desenvolvimentos lexicais dificilmente poderiam ter sido introduzidos noutro contexto que não o capitalismo neoliberal contemporâneo na sua variedade anglo-americana, pois de alguma forma condensam sob a forma de linguagem relações sociais tipicamente contemporâneas que encontram a sua expressão mais perfeita nos centros do sistema-mundo capitalista. Ao mesmo tempo, regressando ao ponto inicial, estes desenvolvimentos linguísticos não deixam de infuenciar as formas de pensar, designadamente sobre o valor individual e a organização do desejo.

Na nossa cultura, isto gera ainda alguma estranheza. Mesmo nos meios mais recetivos a estas formas de pensar, não se deu ainda o salto de “Bezos tem” para “Bezos vale”, nem se pergunta descontraidamente quanto vale aquele ou aqueloutro indivíduo. Porém, da mesma forma que todos os diretores-gerais têm vindo a passar a CEOs, parece-me que a tendência é para que também estas mudanças nas formas de falar e pensar cheguem a seu tempo às semi-periferias como a nossa para também aqui exercerem o seu encantamento.

(publicado no Expresso online a 02/07/2020)

Jogo

Se há tema em que não há dúvidas sobre qual o "jogo" dos responsáveis do PS é o laboral. E no entanto, esse "jogo" toca milhões de portugueses.

No Parlamento, é notória a felicidade com que fazem discursos galvanizadores dos trabalhadores; com que batem na direita contra a degradação laboral. Os deputados são arrebatados e as palmas saem-lhes vivas e sinceras. Acreditam. É, na verdade, essa a sua natureza de fundo. Mas depois, quando chega a altura de decidir, a sua prática assemelha-se à de um político capturado, sem visão ou força. No essencial, alinham - tristes, ainda que sorriam - com a direita.

É como se a palavra fosse inversamente proporcional a décadas de sapos mal engolidos, mal digeridos e pior processados, a ponto de repetirem sempre os mesmos erros. Já nem se fala das alterações legais em linha com o FMI nos anos 70/80, com a OCDE na década de 90 que, aliás, marcou a Estratégia Europeia de Emprego, que veio marcar a linha política tanto do PSD como do PS: transbordou para o Código do Trabalho de Bagão Félix em 2003, para o seu aprofundamento pelo PS em 2008, para as medidas adoptadas pela direita em 2012, às quais o PS aderiu tacitamente, desvalorizando o trabalho e reduzindo a protecção no desemprego.

A 5 de junho de 2018, António Costa elogiou um acordo sobre a precariedade laboral que era apoiado pelo patronato e que contou no Parlamento com o empolgamento da direita, para acabrunhamento do PS. Mas as palavras de Costa saíram-lhe cheias e sinceras. Leia-se o diário das sessões para ver como estavam empolgados:
Este é o primeiro acordo de concertação, em muitos anos, que interrompe a tendência para a desregulação do trabalho e para o fomento da precariedade. (...) Este acordo, assinado por todas as confederações patronais, significa uma mudança de paradigma na visão das associações patronais relativamente ao mercado de trabalho, é a compreensão de que o combate à precariedade não é só um combate pela dignidade e pelos direitos de quem trabalha, é também uma condição essencial para a melhoria sustentável da produtividade de cada empresa. (...) Este acordo reforça, desde logo, as condições da administração do trabalho, designadamente da Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT). (...) Esta é a primeira vez, em muitos e muitos anos, que temos um acordo de concertação social que não visa limitar direitos nem desregulamentar a relação de trabalho, mas, pelo contrário, visa reforçar a proteção coletiva do trabalho e aumentar os direitos dos trabalhadores, que é algo que todos devíamos valorizar o combate à precariedade (...). As relações laborais das empresas do futuro não podem assentar na precariedade, porque o elemento capital para o sucesso dessas empresas é a inovação, e só há inovação se houver formação, e só há investimento na formação se houver tempo para aproveitar essa formação.
Mas depois vem a realidade.

Será por receio do que aí vem? Será por receio de que, mal acabe o lay-off, as empresas abram a torneira do desemprego? O certo é que o Governo parece estar pronto a ceder a tudo o que seja reivindicação patronal, mesmo que isso degrade as condições laborais e de vida dos trabalhadores.

Sintoma dessa cedência permanente - já nem se fala da escolha de Francisco Assis para presidir ao Conselho Económico e Social - é a recente polémica entre os inspectores do Trabalho da Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) e os sindicatos, por um lado, e a própria direcção da ACT e os responsáveis da Direcção Geral de Emprego e Relações de Trabalho (DGERT), por outro.

Tudo por causa do lay-off simplificado. Como o jornal Público tem feito eco, numerosas empresas em lay-off têm pressionado os seus trabalhadores para fazer férias durante esse período e, nalguns casos mesmo, recebendo apenas 66% do seu vencimento original. Não só essas empresas estão a beneficiar de 84% dos seus encargos salariais pagos pelo Estado, como ainda querem que, passada essa fase, os trabalhadores - a quem foram reduzidos os seus salários em 33% - estejam disponíveis para trabalhar, impondo-lhes um regime ilegal de férias, sem contrapartidas adicionais.

E como lidaram com isso os serviços tutelados pelo Governo?

domingo, 5 de julho de 2020

Quando a capa de um jornal não bate certo com o seu editorial


1. A 27 de junho, com a divulgação da ordenação de escolas, Manuel Carvalho defendeu, em editorial no Público, que «os rankings não servem para criar hierarquias de escolas no sistema» mas sim, «pelo contrário, para provar que, em igualdade de circunstâncias, há escolas que brilham e outras nem tanto». E acrescenta, aproveitando para criticar os críticos, que hoje «os pais ou os professores sabem que a ordenação de acordo com as notas tem apenas uma função indicativa». Ou seja, «sabem que não é possível comparar uma escola pública de um bairro urbano de classe média alta com uma outra de um bairro habitado por população desfavorecida».

2. Talvez Manuel Carvalho não se tenha apercebido, mas quando se escolhe para destaque, na primeira página do jornal, que «os colégios privados ganharam terreno» face à escola pública, o Público presta justamente serviço àquilo para que os rankings «não servem», segundo o seu diretor (isto é, para «criar hierarquias de escolas no sistema»). Porquê? Porque continuando os colégios a não disponibilizar dados sobre o perfil sócio-económico dos seus alunos (habilitações dos pais e benefício de Ação Social Escolar), ao contrário do que fazem as escolas públicas, não é possível demonstrar, em termos de comparação público-privado, que «em igualdade de circunstâncias, há escolas que brilham e outras nem tanto». Ou seja, aquilo para que os rankings «servem», segundo o próprio Manuel Carvalho.

3. Por outro lado não sabemos, e era importante sabermos, em que é que o diretor do Público se baseia para afirmar que hoje «os pais ou os professores sabem que a ordenação de acordo com as notas tem apenas uma função indicativa», não sendo influenciados nas suas escolhas, deduz-se, pela simples ordenação das médias de exames. Fez algum inquérito, conhece algum estudo? Tem algum dado objetivo que suporte essa ideia ou é mesmo só «achismo»? Como explica Manuel Carvalho que as escolas privadas continuem reiteradamente a não fornecer dados do perfil sócio-económico dos seus alunos, se os pais, como diz, sabem que não é possível comparar uma escola «de um bairro urbano de classe média alta com uma outra de um bairro habitado por população desfavorecida»? Tem a certeza de que não é pelo risco de os privados saírem mal na comparação, por procederem à seleção dos seus alunos?

4. Se o diretor do Público quiser mesmo levar a sério a «utilidade» dos rankings, nos moldes em que o próprio a define («provar que, em igualdade de circunstâncias, há escolas que brilham e outras nem tanto»), faça uma opção editorial em coerência no próximo ano: exclua da análise, logo à partida, todas as escolas privadas que não lhe fizerem chegar dados sobre a informação sócio-económica dos seus alunos, evitando assim manchetes e conteúdos manhosos, redutores e, por isso, perversamente desinformativos.

Adenda: Como é sabido, o Ministério da Educação está desde 2001 obrigado, por força de decisão judicial, a fornecer os resultados dos exames aos meios de comunicação social, que procedem, eles próprios, à elaboração de rankings. Isto é, não podendo exigir-se ao ministério que apenas disponibilize informação relativa às escolas que enviam dados sobre o perfil sócio-económico dos seus alunos, cabe aos próprios meios de comunicação (e às escolas privadas que concordem com a partilha desses dados, por uma questão de transparência ou pelo facto de não incorrerem em práticas de seleção de alunos), assegurar a necessária seriedade e rigor do processo.

sábado, 4 de julho de 2020

Old new economics

Quem conheça a história da Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa (actual Nova School of Business and Economics) sabe que esta instituição pública esteve sempre na vanguarda da americanização do ensino e da investigação em Portugal, incluindo ao nível do entrelaçamento entre dinheiro público e dinheiro dito privado. Este último não pode ser separado da orientação político-ideológica dominante numa faculdade onde se elaboraram muitas das ideias económicas subjacentes ao cavaquismo e que esteve assumidamente na primeira linha do apoio à troika.

A FEUNL teve sempre uma orientação favorável à economia convencional de matriz neoclássica desde a sua fundação em 1978. Na altura, contrastava com uma paisagem mais diversificada na ciência económica.

Convém entretanto lembrar, como sublinhou um grande historiador do pensamento económico chamado Philip Mirowski, que nem todos os economistas neoclássicos são neoliberais e que nem todos os economistas neoliberais são neoclássicos. No primeiro caso, olhem para Joseph Stiglitz e no segundo para Friedrich Hayek.

Na Nova Economia, os economistas neoclássicos têm sido neoliberais, o que aliás tendeu a ser norma dos anos setenta em diante, em linha com o enviesamento de um quadro analítico atreito a demasiadas idealizações mercantis. Nos anos oitenta, por exemplo, os economistas desta faculdade tiveram uma coluna no jornal Semanário chamada Mão Invisível, onde apelavam, de resto com grande efeito, à desregulamentação, privatização e liberalização da economia portuguesa. O seu Professor Catedrático Aníbal Cavaco Silva daria poder a estas ideias sempre próximas do PSD e do CDS, mas também progressivamente do PS da revisão constitucional de 1989 em diante.

Susana Peralta é uma das excepções a este padrão: neoclássica, mas crítica de algumas dimensões do neoliberalismo. E fá-lo sempre com consistência e desenvoltura. Os seus artigos no Público são um exemplo, concorde-se ou não, de rigor argumentativo e de esforço de divulgação de trabalhos científicos. Qualquer jornal de referência faz bem em tê-la e qualquer direcção de faculdade deve olhar com satisfação para tais exercícios sérios e fundamentados. E o mesmo se aplica às suas intervenções televisivas.

Mas a elitista Nova SBE não é uma instituição qualquer. O dinheiro privado imiscuiu-se ali de tal forma nos últimos anos, a retórica mercantil da “gestão da marca” é de tal ordem, que mesmo a linha encarnada por Susana Peralta parece tornar-se incómoda para quem manda, como nos informou Bruno Faria Lopes na Sábado. A EDP é realmente só a ponta deste icebergue académico.

O mercado das ideias é uma fraude. A integridade e liberdade académicas dependem da autonomia institucional em relação ao poder do dinheiro. Felizmente, esta ainda é uma faculdade pública. Mas também é um aviso. Nem tudo ainda é possível, creio. Ou será, dado que a FEUNL esteve sempre na vanguarda?

Adenda. Foi com satisfação que vi Susana Peralta assinar ontem o seu artigo semanal no Público como Professora da Nova SBE. Espero que nunca o deixe de fazer.
 

sexta-feira, 3 de julho de 2020

Para lá das perceções

Muito pelo facto de a região de Lisboa ter começado a destacar-se nos valores registados em todo o país, e dado o surgimento de focos de contágio com especial incidência nesta região, tem-se gerado nas últimas semanas a ideia de uma inversão inesperada da trajetória da pandemia, de descontrolo ou mesmo de que o caos se está a instalar.

Importa lembrar, desde logo, que era previsível que o desconfinamento se traduzisse num acréscimo do número de casos, face ao aumento da circulação de pessoas e à retoma gradual da economia, implicando o acompanhamento da situação e a resposta aos problemas que foram surgindo. E mesmo que se pudessem ter antecipado alguns impactos mais específicos do desconfinamento (que veio revelar diversas fragilidades estruturais da AML), ou ponderado melhor algumas opções, o facto é que não se verificou, até agora, nenhuma espécie de descontrolo ou reversão, além do que se poderia esperar, de ganhos anteriormente obtidos. Ou seja, continuamos a não ter tragédia nem milagre que justifiquem o destempero na análise, por pânico ou euforia.


De facto, quando se analisam os dados disponíveis, prevalece a ideia de que, depois da contenção do contágio conseguida com as medidas de confinamento, se entrou numa fase de relativa estabilização, com aumentos comparativamente pouco significativos nos principais indicadores (incluindo os relativos ao número de internados e número de óbitos). Se por exemplo desde o «pico» no número de infetados (24 mil, no início de maio) se passou para um mínimo que é metade desse valor, o aumento desde então situa-se em apenas cerca de mil. De forma análoga, a tendência recente de aumento o número de internados e de óbitos está muito longe de poder corresponder a uma inversão simétrica, em termos de ritmo, à registada no período de diminuição após o «pico».


Não se sabe, evidentemente, como tudo vai evoluir e até quando se manterá a atual situação de relativa estabilidade e aumento moderado dos valores. O que se sabe, e é o mais importante, é que a capacidade de resposta do SNS para gerir o volume de situações mais críticas está longe da pressão a que o mesmo já foi sujeito, quando se registou o maior número médio diário de infetados, de novos casos, de internados e de óbitos.

quinta-feira, 2 de julho de 2020

Na Universidade Pública, SA ter opiniões é um problema

Numa faculdade que depende dos interesses privados para sobreviver (mesmo sendo pública), não é lá muito boa ideia ter ideias desalinhadas com a doutrina oficial.


Facetas


Já que se comemoram os 100 anos do nascimento da fadista Amália Rodrigues, tão aproveitada e que se deixou aproveitar pelo regime salazarista, convinha igualmente lembrar as outras suas facetas. Aqui fica o fado de Peniche, com música de Alaín Oulman e escrito por David Mourão Ferreira em homenagem aos presos políticos do regime fascista, tanto desterrados para Tarrafal, como para o Depósito de Presos de Caxias e de Peniche - conhecido pelo Fado de Peniche.

Claro que Amália tinha a sua visão e as suas palavras entroncam, sem saber, em muitas discussões estéticas, embora não entendendo que o amor se pode enlaçar de tantas formas e facetas, todas cantadas com a mesma esperança de eternidade e completude, emanadas do mesmo caldo apaixonado, que se torna difícil destrinçá-las pelas estrias dos nervos. Pelo menos, era assim naquele tempo para algumas pessoas. Vidas interrompidas pela força policial, separadas, mesmo proibindo casais de se corresponderem, por escrito, à distância, apesar da censura.

Mas é verdadeiro o seu pensamento: "As coisas quando têm força são sentidas pelas pessoas todas". Ou melhor: "As coisas quando têm força" - e são sinceras - "são sentidas pelas pessoas todas", nas suas diversas facetas:
«Não sei se canto aquilo que o autor quer, mas o que entendo chega-me para cantar. As coisas quando têm força são sentidas pelas pessoas todas. Só uns versos muito complicados, a quererem dizer coisas que não chegam a dizer, é que ninguém entende. Sempre achei o Abandono, do David Mourão-Ferreira, um fado de amor. Nunca pensei em Peniche. E um fado de tal maneira bem feito, com palavras tão bonitas, com tanto peso, que não quer dizer que o não tivesse cantado sabendo a sua intenção. E talvez até o tivesse cantado com um ar tão revolucionário que não daria aquele resultado. Teria saído pior. O disco chegou a estar proibido por causa do Abandono. Depois é que o soltaram. Mas quando o cantei, aquilo era uma tristeza de amor, que é um sentimento muito mais bonito e muito mais dorido que uma ideia revolucionária. Era o amor de uma pessoa que foi com outra. Não me passavam pela cabeça prisões. É um fado que, ainda hoje, toda a gente gosta dele. E cada pessoa o sentiu à sua maneira. Um revolucionário pensou que era de Peniche, mas a maior parte de Portugal, que não é privilegiada, que não estava alertada, que é como eu, pensou no amor. Assim, chegou a toda a gente. A partir deste primeiro disco, o Alain foi sempre muito importante para mim.»
Vítor Pavão dos Santos, Amália. Uma Biografia, 2.ª edição, Lisboa, Editorial Presença, 2005, p. 139.
Fica também a versão Camané:


A música agora tem de ser mesmo outra


Qualquer intervenção do Estado na TAP implicará que o Estado acompanhe todas as decisões que são tomadas com impacto na vida da empresa (...) A música agora é outra na TAP (...) É bom que estejamos conscientes que a missão é salvar a TAP e não nenhum acionista em particular (...) Estamos interessados que parceiros nos acompanhem na intervenção na empresa. Se não acompanharem, o Estado não deixará cair a empresa. Mas isso terá consequências na relação societária (...) O Estado está a acompanhar a situação tremendamente difícil da TAP e a estudar diferentes alternativas de intervenção e a discutir o seu futuro de acordo com interesse nacional, e não de qualquer interesse particular. A TAP sem intervenção pública não tem qualquer possibilidade de sobreviver.

Pedro Nuno Santos, 28 de Abril de 2020.

A perturbação da elite compradora e dos seus ideólogos com a nacionalização da TAP é visível. Não estão habituados a ter governantes que defendem de forma intransigente o interesse nacional, o que obviamente exige um controlo público da empresa. Lentamente, demasiado lentamente, até o Primeiro-Ministro parece estar a ser compelido pela realidade que tem muita força.

A perturbação de Manuel Carvalho é então visível em mais um editorial do Público. Como não tem coragem para defender a falência de uma empresa reconhecidamente crucial para a economia nacional, embora garanta que “é há décadas uma ferida aberta na vida do país”, somos confrontados com um penoso texto cheio de contradições, revelando, uma vez mais, a falência intelectual do extremo-centro e das suas parcerias.

Por um lado, afirma que “como disse, e bem, o ministro Pedro Nuno Santos, o Estado não podia ceder às pressões dos privados”. Por outro lado, afiança que “o Governo esticou a corda”, dado que “as suas exigências revelaram mais um carácter de imposição do que uma abertura negocial”.

É o que eu digo: não estão habituados. Mas abertura para o quê? Para o rentismo financeiro dos privados e dos seu empréstimos bem remunerados, para a sua má gestão, ao arrepio de compromissos previamente assumidos com anteriores governantes, que confiaram demasiado na bondade desta gente? Ou será que ainda espera ver aplicar-se uma variante do princípio, que vigora na banca, do pagamos, mas não mandamos?

O “pesadelo” de Carvalho é visivelmente o de uma TAP controlada pelo Estado, onde a adaptação a uma situação dificílima será sempre mais escrutinada e participada e onde as decisões poderão ter em um horizonte mais amplo, incluindo nos interesses que são considerados.

E, ainda para mais, existem outras empresas estratégicas, da Efacec ao Novo Banco, onde a realidade pode exigir alterações nas relações de propriedade.

É claro que há a realmente inútil Comissão Europeia, só aparentemente neutra em relação às relações de propriedade, como se viu com as ruinosas privatizações da troika, e, além disso, obrigando empresas públicas a comportarem-se como se fossem privadas e fazendo-o com mais afinco ideológico na periferia submetida a esta institucionalização da concorrência sem fim. Mas europeístas, e ainda por cima acríticos, não têm qualquer autoridade para falar deste real entrave a um controlo real pelos representantes dos que aqui vivem e dos que aqui querem voltar a viver.

Adenda. Vale a pena, já agora, atentar na intervenção do deputado Bruno Dias no dia 26 de junho: É o controlo público da TAP que defende o interesse do povo e do País. É que é mesmo.

Alternativa à capa da Exame


Aqui em Portugal, acontece o que acontece quando se recolhe opiniões (ver caso da revista Exame). Em França, pelo menos existe alguma alternativa...

quarta-feira, 1 de julho de 2020

Amanhã, videoconferência Práxis/Zero: «Emergência Climática»


«Um novo contrato social e ambiental é preciso. É para isso indispensável a convergência e integração da questão social e da questão ambiental, a junção das forças e dos ativismos destes dois mundos, do trabalho e da ecologia. O trabalho digno e o emprego com direitos e a proteção do ambiente são dimensões inseparáveis na defesa da nossa casa comum e do nosso futuro coletivo. Identificar os problemas e obstáculos e contribuir para a construção de um caminho e de uma agenda comum é o nosso objetivo».

Promovido pela Práxis e pela Zero, realiza-se amanhã o debate com transmissão em direto, a partir das 21h00. O painel de oradores convidados conta com Francisco Ferreira, Luísa Schmidt, Paulo Pedroso e Ricardo Paes Mamede, participando no painel de ativistas das organizações convidadas Alexandre Cortes (SINDEL), Joanaz de Melo (GEOTA), João Camargo (Climáximo), José Costa (SPGL), Mafalda Brilhante (Precários Inflexíveis) e Pedro Santos (Sindicato dos Jornalistas). Henrique de Sousa (Práxis) encerra a sessão.

Tendências na opinião?


Bem sei que um Público de Sábado já só serve para embrulhar peixe, mas antes disso vale a pena ainda comentar dois artigos, até porque podem, haja optimismo em tempos tão sombrios, sinalizar tendências no campo da opinião.

Em primeiro lugar, Paulo Pedroso, um intelectual social-democrata, lembrou-se, num notável artigo, já aqui referido, “do fantástico livro de Engels sobre a situação da classe trabalhadora em Inglaterra em meados do século XIX.” A social-democracia precisa realmente de retomar o melhor da tradição marxista.

O livro de Engels permanece como um testemunho vívido, profundamente objectivo e empático, da situação social em Manchester em plena Primeira Revolução Industrial, uma cidade onde a esperança média de vida era inferior à da Inglaterra no seu conjunto e onde um operário podia esperar viver pouco mais de vinte anos nos anos quarenta do século XIX, dadas as epidemias, a habitação insalubre, a má alimentação, a poluição ou os constantes acidentes de trabalho. O capitalismo puro e duro em toda a sua mortífera compulsão. E não me venham com o longo prazo, até porque aí o capitalismo foi sendo moldado pelas lutas sociais e pelo reformismo do medo, tornando-se menos puro.

Aproveito para lembrar também o mais tardio livro Para a questão da habitação de Engels, que de resto inspirou um livro recente de economia política sobre A nova questão da habitação em Portugal.  Ela aí está em plena pandemia. Não se regressa ao capitalismo do século XIX, mas há retrocessos preocupantes em curso e toda uma economia convencional que os tem justificado.

Em segundo lugar, também no Público de Sábado passado, a questão social que salta à vista leva João Miguel Tavares a uma surpreendente primeira ruptura com o liberalismo:

“Como seria de esperar, a pandemia europeia começou nas estâncias de ski finas de Itália e acabou nos bairros degradados das zonas metropolitanas (…) Os surtos que supostamente nasciam nas festas de betinhos desgovernados, afinal pegaram de estaca nos bairros pobres, na construção civil, nos transportes suburbanos lotados; nos meios onde o gel desinfectante é um luxo e o distanciamento social uma miragem. O problema é estrutural, não é individual.”

Repito o que aqui escrevi em Março:

Lembram-se da economia do pingo (trickle-down economics), aquela que dizia que os ganhos dos ricos iriam mais cedo ou mais tarde beneficiar os pobres? Pouco importa, é uma ideia que já foi há muito para o caixote do lixo da história intelectual, dados os estudos económicos sobre a desigualdade. Entretanto, a economia política do pingo pode ter, isso sim, uma aplicação na transmissão da covid-19: o vírus parece descer em cascata pela pirâmide social abaixo, dos globalistas, também designados de passageiros frequentes, geralmente mais ricos, para os enraizados, os que não saem do mesmo sítio, geralmente mais pobres.

E agora pergunto: o que resta da economia política liberal, para lá de gritinhos genéricos, sem economia do pingo e, ainda para mais, com o reconhecimento da realidade da sociedade, bem mais do que um somatório de indivíduos, ou não fossem os problemas realmente estruturais e logo só passíveis de resolução através da acção colectiva?

Se a intelectualidade social-democrata retomar a ligação ao marxismo e se a liberal, ao invés de ir para o fascismo, como costuma acontecer nas periferias em tempo de crise, virar para a social-democracia, como por vezes aconteceu no centro, nem tudo estará perdido.

Exame à Exame

Fernando Freire de Sousa (presidente da CCDRN), Cláudia Azevedo (CEO da Sonae), Pedro Siza Vieira (Ministro do Estado, da Economia e da Transição Digital), Pedro Penalva (CEO da Aon Portugal), Carlos Leal (Diretor-geral da United Investments Portugal), José Gomes (CEO Ageas Seguros), Adolfo Mesquita Nunes (Advogado, Partner na Gama Glória), João Bento (CEO dos CTT), Pedro Norton (CEO da Finerge), Fernando da Cunha Guedes (Presidente da Sogrape), Salvador Malheiro (Presidente da Câmara de Ovar), Ljubomir Stanisic (Chef), António Saraiva (Presidente da CIP), Pedro Nuno Santos (Ministro das Infraestruturas e da Habitação), Paolo Fagnoni (Diretor-geral da Nestlé em Portugal), Luís Mesquita Dias (Diretor-geral da Vitacress Portugal), Daniel Traça (Dean da Nova SBE), António Portela (CEO da BIAL), Isabel Camarinha (Secretária-geral da CGTP), Margarida Almeida (CEO da Amazing Evolution), Ricardo Sousa (CEO da Century 21 Portugal), Rui Leão Martinho (Bastonário da Ordem dos Economistas), Jorge Rebelo de Almeida (Presidente da Vila Galé), Alberto Ramos (CEO do Bankinter Portugal), Nuno Garoupa (Professor na George Mason University), Pedro Magalhães (Investigador principal no Instituto de Ciências Sociais – Universidade de Lisboa), Marques Mendes (Advogado, consultor da Abreu Advogados), António Rios Amorim (Presidente da Corticeira Amorim), Carlos Silva (Secretário-geral da UGT), Paulo Pereira da Silva (CEO da Renova), Luís Onofre (Presidente da Confederação Europeia da Indústria de Calçado), Pedro Pita Barros (Professor de Economia da Saúde na Nova SBE), Álvaro Santos Pereira (Diretor no Departamento de Economia da OCDE e ex-ministro da Economia e do Emprego), João Paulo Teófilo (CEO da Pinhais e Companhia).

Na sua edição de julho, a revista Exame pediu a 34 personalidades um testemunho sobre o que aprenderam com a pandemia. Dos 34 (trinta e quatro) nomes escolhidos, apenas 3 (três) são mulheres (ou seja, 8,8%). Mesmo atendendo a que a maioria das chefias das grandes empresas são do sexo masculino (importando considerar, contudo, que a lista de nomes nem sequer se restringe a esse universo), talvez seja uma desproporção um bocadinho excessiva, não?