sexta-feira, 12 de março de 2021

Da miséria editorial


Imaginem se a Assembleia da República andasse a patrocinar directamente notícias em jornais ditos de referência. Haveria uma reacção, dado o maior escrutínio democrático. 

Já o Parlamento Europeu, a que ninguém liga muito, pode patrocinar notícias à vontade, tal como a Comissão Europeia o faz, no quadro da propaganda europeísta assim naturalizada. A crise de um certo modo de produção de notícias manifesta-se em lapsos ético-políticos que prejudicam o bom jornalismo que ainda se faz aqui e ali.  

No meio da catástrofe das vacinas na UE, onde o euro-liberalismo se revela em toda a sua incompetência mortífera, o jornal que ainda vou comprando em banca, o Público, dá espaço à ofuscação patrocinada por estas instituições. 

O leitor português tem de ler imprensa mais independente, como o Le Monde diplomatique - edição portuguesa, ou saber inglês e ter outros recursos para compreender melhor os efeitos perversos deste objecto político não-identificado na presente conjuntura. 

A miséria editorial europeísta será um dia vista como um dos sintomas mórbidos da crise longa neste país, quando o velho euro-liberalismo demorava a morrer e o novo momento soberanista não tinha nascido ainda. Haja esperança.

quinta-feira, 11 de março de 2021

Iniciativas há muitas


Se é verdade que a justeza de uma posição nunca foi definida pelas companhias, também é verdade que não devemos elogiar as más companhias, sobretudo quando estas procuram sobretudo promover o capitalismo deseducativo

Estou a pensar em intelectuais de esquerda que, subestimando as posições de comunistas e de bloquistas, os primeiros mais atempadamente, elogiaram a iniciativa reaccionária pela sua posição sobre a abertura das escolas. Bem sei que a propaganda cool, em inglês e com alusões aos Pink Floyd, é dirigida a segmentos ditos qualificados da pequena, média e alta burguesia, mas isso não justifica tudo, embora explique muito. 

Estes liberais, com a sua fraudulenta conversa da liberdade, são um alvo, até porque o seu programa económico é no fundo uma versão aprimorada do programa do Chega, não o esqueçamos.

     

quarta-feira, 10 de março de 2021

Onde está ele?

Há uma velha máxima caricatural do trabalho dos jornalistas em busca de notícias.
Notícia não é o cão morder no homem, mas sim o homem que morde no cão.
Há quase 30 anos, houve quem desse corpo a essa anedota (ver aqui). Mas há muito que o que se passa é o contrário.

Ainda agora se passou isso.

Ao fim de meses de prisão e de liberdade vigiada e de uma decisão judicial histórica que lhe limpa o cadastro, anula condenações e permite-lhe ganhar as eleições a Bolsonaro, Lula da Silva discursa! Pois, ao fim de uns minutos, a pivot da RTP Cristina Esteves passa a emissão - "Lula faz agradecimentos" - ... para o jornalista Luís Baila para que explique o que se passou e, mais adiante, pergunta-lhe se a anulação das acusações foi "apenas processual" e se Lula pode, afinal, ainda vir a ser condenado e preso. Baila reitera que assim é e que até correm mais processos contra ele, além do Triplex. E pronto! A emissão vai para o noticiário das 15h que... repete o noticiário das 14h. Minutos depois, Cristina Esteves despede-se com a sensação de dever cumprido e passa a emissão para a pivot Dina Aguiar! A SIC notícias também andou pelo estado de emergência e a audição dos partidos pelo presidente da República. A TVI24 esteve mais uns minutos em directo com Lula do que a RTP para logo passar... aos números da pandemia e ao estado de emergência, um tema nunca abordado no último ano! A CMTV andou por todos os lados menos pelo Brasil.

Mas nos jornais também se passa o mesmo. O Público mantém na 1ª página online a pandemia e as vacinas. O Expresso idem...


Onde páram, pois, os jornalistas que antes andavam atrás do homem que mordeu no cão?

Uma dezena de razões


A decisão sobre a data de reabertura das escolas é política, e não técnica, mas o governo tem bons argumentos técnicos para contrariar os dois peritos que recomendam manter escolas do ensino básico fechadas até à Pascoa. Haja coragem.

O Governo tem 10 razões para abrir as escolas do ensino básico na próxima semana, ao contrário do que sugeriram os peritos no Infarmed. 

1. Baixo risco, enormes ganhos. Cruzando o risco da reabertura das escolas com o impacto social do seu fecho, os ganhos são evidentes e reconhecidos pelos peritos que estiveram no Infarmed. Não se compreende por isso que o seu plano de desconfinamento reabra o ensino básico em simultâneo com as esplanadas dos cafés e restaurantes. 

2. Abrir tudo complica avaliação. Reabrir escolas do ensino básico (entre os 6 e os 12 anos) ao mesmo tempo que as esplanadas e o comércio em espaços fechados é não só chocante numa ótica de prioridades, como é contraproducente num desconfinamento que se pretende gradual e experimental. Como dissociaremos o impacto de cada setor nos contágios? 

3. Incidência reduzida. O número de casos acumulados em 14 dias por 100 mil habitantes é já inferior a 120, que é o limiar proposto pelos especialistas para se passar ao nível 3, que reabre escolas do ensino básico. Não há critério epidemiológico para adiar a reabertura por duas semanas. 

4. Caso único na Europa. Portugal tem o mais baixo nível de incidência de covid-19 e o menor R(t) de toda a UE. É também o único país que mantém todas as escolas fechadas desde 22 de janeiro. 

5. Critérios draconianos. Na Europa, só Portugal e a Dinamarca é que cumprem o critério dos peritos de menos de 120 casos para a reabertura das escolas do ensino básico. 

6. Metas irreais. Portugal tem agora 118 casos por 100 mil habitantes, mas a curva dá sinais de querer achatar e o R(t) sobe há duas semanas. Não é crível que o país consiga reduzir muito mais os contágios, como não conseguiram a Alemanha ou o Reino Unido com confinamentos idênticos. Assim, dificilmente cumprirá a meta para abrir escolas aos maiores de 12 anos. Ficariam assim fechadas todo o ano letivo. 

7. Experiência passada. Quando arrancou o ano letivo, Portugal já estava acima da fasquia dos 60 e um mês depois passava os 120, que é onde começa o quarto nível de risco que prevê fecho das escolas do 
ensino básico. Apesar disso, o primeiro período decorreu com normalidade e sem surtos relevantes nas escolas. 

8. Mudança de critérios. Os dois peritos consideram risco elevado 120 a 240 casos, rompendo com as anteriores categorias e com os critérios do ECDC, que consideram esse nível de risco moderado. 

9. Há tempo para preparar reabertura. Não são precisos muitos dias para preparar o regresso dos alunos. Além disso, o Governo pode antecipar o anúncio já para amanhã quando se reunir com os parceiros sociais e a reabertura pode ser feita só no dia 17, quarta-feira, quando entra novo estado de emergência em vigor. 

10. Aumento de circulação é contido. Reabertura não implica grande aumento de circulação de pessoas. Olhando para os dados de mobilidade do Google, conclui-se que as deslocações baixaram pouco com o fecho das escolas e que a principal descida resultou do confinamento geral, iniciado uma semana antes.

Manuel Esteves, 10 razões para reabrir já as escolas, Jornal de Negócios, 10 de março de 2021.

terça-feira, 9 de março de 2021

Ana(grama), Júlio Resende


Da prática e da contradição


António Costa constatou o óbvio ululante no Público, ou seja, o fracasso das políticas neoliberais. Na mesma semana, do alto da presidência portuguesa, imaginando-se no centro do mundo, Augusto Santos Silva foi notícia, e logo no Financial Times, porque sentenciou que a “credibilidade” da UE estaria ameaçada pela não ratificação do acordo de comércio e investimento, ditos ainda mais livres, com o Mercosul. Parece que há países com preocupações ambientais, entre outras. Na prática, as únicas políticas credíveis ainda são as que falham. 

A ideologia zumbi da terceira via culmina sempre nos negócios estrangeiros e nas guerras sem fim. Agora, aposta-se tudo na importação de picanha barata, à custa da Amazónia, a ser destruída pelo capitalismo capitaneado por Bolsonaro, e à custa dos circuitos mais localizados e eventualmente sustentáveis de produção do lado de cá e de lá. 

Nada temeis, ambientalistas: as emissões de metano seriam reduzidas por cá e o que está longe não conta. De resto, não há falha do mercado que não se disfarce com a criação de mais mercados ineficazes, por exemplo de direitos de emissão na UE. Confiai na UE, a maior máquina liberalizadora jamais inventada, à boleia da retórica do New Deal verde e de outras metáforas para Estados realmente existentes e não para este incompetente objecto político não-identificado. 

Definitivamente, não precisamos de políticos do fim da história, agora que esta visivelmente recomeçou no meio de catástrofes em cadeia, com raízes socioeconómicas evidentes. E estas catástrofes de resto não se enfrentam com cadeias de produção cada vez mais longas e opacas, mas sim com uma desglobalização pragmática e já testada, agora com novos fins. 

segunda-feira, 8 de março de 2021

Dia de lutas

Em articulação com as organizações políticas e sindicais de classe do proletariado dos seus respectivos países, as mulheres socialistas de todos os países devem assinalar anualmente o Dia da Mulher, com o propósito principal de obter o direito de voto. Esta reivindicação deve ser conjugada com a questão da mulher na sua totalidade, de acordo com os preceitos socialistas. O Dia da Mulher deve ter uma natureza internacional e deve ser cuidadosamente preparado.

Assim falava, em 1910, a socialista alemã Luise Zietz, fazendo a proposta de um dia internacional na conferência das mulheres socialistas da Segunda Internacional presidida por Clara Zetkin. É preciso não esquecer as origens deste dia internacional: era das lutas de classes, assim no plural, que se tratava e é disso que ainda se deve tratar hoje em dia.

Passados mais de 110 anos, os representantes mais reaccionários do patronato querem fazer esquecer uma história feita de lutas socialistas, pela igualdade democrática e socioeconómica, sem separações, até porque a realidade não foi feita de, e por, separações artificiais. A CIP quis organizar um debate, inicialmente só com patrões, assinalando este dia como “um legado histórico e não como um dia de luta”. Depois da polémica, parece que incluiu patroas no debate, ou seja, aderiu ao mais conveniente feminismo neoliberal das “líderes”, do “talento feminino”,  das chamadas empreendedoras, das que conseguem ser e fazer tudo, mas só graças às mãos invisíveis de outras mulheres. 

A rasura da história é sempre esclarecedora. 

O que fazer com o capitalismo?

Podem aceder à ligação zoom e a mais detalhes sobre este ciclo de diálogos no site da EcPol.


domingo, 7 de março de 2021

Não há qualquer semelhança entre finanças familiares e finanças públicas

 “Entrevistador: Agora, isto [a dívida pública] não é como uma dívida das famílias, isto não é como um saque a descoberto; quão importante é, então, que paguemos isto?

Convidado: Esse é um ponto realmente importante, há muito tempo que falamos disto [da dívida pública] como se fosse uma dívida familiar, mas, quando se é dono de uma casa, o que nos preocupa com a dívida é o que acontece se não pagarmos, os oficiais de diligências podem aparecer, e podes perder a sua posse, mas não é assim para o Estado, sobretudo por causa de a quem este pediu emprestado. E se olharmos para isso, para quem devemos de facto este dinheiro, o dinheiro [que o Estado pediu] emprestado desde a pandemia, na verdade, 92% do mesmo é devido ao Banco de Inglaterra, que é, de facto, em última análise, outro ramo do Estado. Por isso, se estiveres a pedir emprestado a ti mesmo, tal como acontece com as finanças públicas, tens um credor muito mais paciente, que não vai bater à tua porta em breve”. 

Parece que a BBC finalmente descobriu que criar dinheiro faz diferença, coisa que aqui no nosso retângulo, ainda não aconteceu.

Parece complicado, mas não é. 

Desde o fim do padrão-ouro, um Estado monetariamente soberano dispõe de uma margem de manobra decisiva, por comparação com um Estado que abdicou desse poder.

Para lá dos pesados véus de opacidade, das dúvidas fabricadas e dos constrangimentos autoimpostos, o que sabemos é que um Estado soberano cria moeda quando gasta ou quando paga dívidas e destrói moeda quando cobra impostos ou pede emprestado.

De facto, a venda de obrigações do tesouro, a decisão do Estado se endividar junto do setor privado, não é uma operação de financiamento, mas uma operação de política monetária que, controlando o nível de liquidez em circulação, visa o controle da taxa de juro. 

Os impostos, por outro lado, têm várias funções. Redistribuir riqueza, influenciar comportamentos de consumo e guiar o investimento são algumas delas. Em termos orçamentais, os impostos servem para condicionar a componente privada da procura agregada adequando a procura agregada total à capacidade produtiva da economia e, assim, combater desemprego ou inflação. 

(Uma excelente explicação de como funciona a ligação entre um banco central e o seu soberano pode ser acedida, por exemplo, aqui)

Pedalar


Se Ana Cordeiro Santos não vem ao blogue, o blogue vai até à economia política, divulgada numa excelente análise em quatro partes, da autoria da jornalista Luísa Pinto, no Público, com uma relevante pergunta de partida: Porque é que procurar casa se tornou um inferno? 

 “O tema da financeirização da habitação está a ser estudado um pouco por todo o mundo. Em Portugal também. Ana Cordeiro Santos, investigadora da Universidade de Coimbra, dedicou-se exaustivamente ao tema enquanto coordenadora do Finhabit, um projecto de investigação que culminou na publicação de “A nova questão da habitação em Portugal”. Este trabalho mostra como o nexo finança-habitação tem vindo a acentuar desequilíbrios e desigualdades. O escrutínio feito às políticas públicas levadas a cabo em Portugal atesta que agravaram a transformação da habitação num activo financeiro transaccionável.”

Em complemento, aproveito para deixar aqui um estudo, publicado na Análise Social, sobre a financeirização da habitação e desigualdades no nosso país, comparando as áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto, da autoria de Ana Cordeiro Santos e Raquel Ribeiro. 


Trovante - Chão nosso


sábado, 6 de março de 2021

Vida e Obra



O PCP faz 100 anos. É obra. São muitas obras. A mais importante delas, a democracia e liberdade, foi uma obra duríssima, na qual os comunistas investiram vidas e mortos. Uma geração extraordinária de militantes e dirigentes que arriscaram tudo para que hoje possamos discutir, com grande descontração, se o PCP pode ou não colocar bandeiras no espaço público.

A revolução já vai longe. Já não estão cá muitos dos que a viveram e que conheceram, não apenas a repressão e a censura, mas também a miséria absoluta e o atraso, que faziam deste país um cantinho de terceiro mundo em plena Europa. Talvez por isso seja possível que tantos tentem hoje reduzir o papel do PCP na construção da democracia.

Alguns dos que têm a lata de o fazer apoiaram a ditadura até às 23h59m de 24 de Abril, foram dormir e acordaram democratas. Todos procuram apagar o papel central do PCP em meio de século de resistência em ditadura e quase outro tanto em construção e consolidação da democracia. Especulam sobre o que podia ter acontecido, omitindo o que aconteceu. O problema é que o PCP não foi só parte da resistência, não foi só parte da revolução, foi também parte da normalização e consolidação democráticas e faz parte da democracia hoje. Que haja gente que o queira silenciar (em nome da democracia e da liberdade, claro) é talvez a mais bela homenagem que irão receber os comunistas durante estas comemorações. É também útil para nos recordar a todos da fragilidade do compromisso de alguma da nossa direita com a democracia.

Cresci no meio de comunistas. Depois da escola, ia para o sindicato da minha mãe fazer colares de clips e aviões de panfleto. Fui à primeira Festa do Avante! com dois meses e não falhei nenhuma até sair do PCP. Fui militante durante 7 anos. Durante esse tempo, fui acumulando divergências e essas divergências foram-se tornando cada vez mais fundamentais. Saí sem ressentimentos. Não me juntei ao exército dos arrependidos e dos anticomunistas súbitos e súbditos. Durante os meus anos de militância no PCP, aprendi muito, lutei por causas justas e trabalhei com algumas das melhores pessoas que encontrei na política.

Apesar das divergências que me fizeram sair, tento ajudar a combater alguns dos preconceitos e simplificações que existem acerca da vida política do PCP. Não concordo com as suas regras de funcionamento mas, ao contrário dos mitos, sei que no PCP se pensa, discute, diverge. E luta, claro. Quase sempre por boas razões. Que este centenário do PCP sirva para todos ficarem a conhecer um pouco melhor esta parte indispensável da nossa democracia, da nossa história e do nosso presente. Um partido a que devemos imenso, todos nós. Incluindo muitos dos que o detestam.

Parabéns ao PCP. E obrigado.

Um comício à chuva

Fotos de Maria Cecília Alves
 
Foi dos primeiros comícios do PCP em Lisboa a seguir ao 25 de Abril. Pelo menos é a memória que tenho. Chovia sem parar. E, no entanto, a praça do Campo Pequeno estava apinhada, fechada pelas copas dos guarda-chuvas, panos abertos sem pensar no vento molhado. Havia uma intensidade nas vozes, uma força nas palmas, todos os sentimentos se punham nos refrões que se cantavam. Havia uma alegria sem meias tintas, qualquer coisa de "desta vez, ganhámos". E este "ganhámos" éramos todos, quem andara décadas a marrar pelas paredes a pensar em todos, a falar baixo nos cafés, em reuniões escondidas, a fugir dos cercos da polícia e das suas cargas, de ser apanhado e levado para o Governo Civil onde rapavam o cabelo aos rapazes, a pensar que se tinha de tomar diversos transportes de noite para um encontro que nos fora marcado com alguém que estava na clandestinidade, a saber o risco de prisão, até porque se sabia como eram por dentro. Corredores longos e vazios com portas, sons metálicos a ecoar, uma fechadura e uma cela imensa, escura, com beliches metálicos, colchões de palha rotos, cobertores cheios de pó, um pequeno almoço de café e fatias de pão, nada para fazer entre quatro paredes, enquanto o guarda de capote e espingarda ao ombro passava com medo de se molhar do lado de fora de duas grades de uma janela metida para dentro. Chovia também nesse dia no Forte em Caxias. E havia lama. E nós crianças tínhamos aquela alegria de não olhar para mais nada e metíamo-nos com o guarda: "Então, senhor guarda, está bom tempo aí fora?"

Anos a fio disso. Mas agora tudo estava por fazer e ia ser possível construir tudo. Outro país.

Levanto a cara do écran do computador e está a dar um programa de televisão -  "O último apaga a luz". Tudo parece hoje como que adormecido, ensabonetado, expurgado de emoções fortes, vibrantes. A palavra tornou-se demasiado fácil, barata, e perde-se tanto tempo com nada. Utiliza-se a televisão para lixo que é remunerado com publicidade. Anos a fio disto. E tempo é coisa que não temos. Mas só se aprende com tempo.

É preciso tudo outra vez.

Parabéns


uns anos, dei conta de um panfleto de 1997 e da análise premonitória que o acompanhou. Distribuí este panfleto à porta do ISEG há quase um quarto de século. Não sou muito de guardar coisas, mas conservo um. 

Sempre gostei de distribuir panfletos e de falar com as pessoas, aqui e ali, sobre o seu conteúdo, real ou imaginário. Outros o fizeram, arriscando tudo, não o esqueçamos. E a militância também é feita destas tarefas, aparentemente simples e nem sempre monótonas, que dependem da certeza que outros, algures, a estão a repetir, até porque outros as repetiram e outros as repetirão. 

Como assinala Jodi Dean, num livro sobre a forma de pertença política associada à palavra camarada, que prolonga a sua reflexão sobre a importância da forma partido, “um camarada é alguém com quem contas, com quem partilhas uma ideologia, um compromisso com princípios e objectivos para lá do que é momentâneo, numa luta que todos sabem ser longa”. E sublinha a importância da “semelhança dos que estão do mesmo lado”. Não há política sem clivagem e sem homogeneização numa época em tudo conspira para a singularidade feita de aparências. 

No início de 2021, tinha ido buscar livros e papeis a uma faculdade demasiado vazia logo pela manhã. Pairava o espectro de um novo confinamento. Dois estudantes, com todos os cuidados, distribuíam panfletos da candidatura de João Ferreira à saída. Já não recebia um panfleto há imenso tempo. Nem imaginam como fiquei subitamente alegre num dia que prometia ser triste. Trocámos duas ou três palavras de cumplicidade: força, boa sorte, obrigado. “Junta a tua à nossa voz”. O sol brilhava e ainda não tinha reparado nisso. 

Há cadeias que não se quebram ao longo do tempo e que podem ser redescobertas de formas novas: afinal de contas, devemos evitar terminar em nós mesmos, já que sozinhos não valemos nada, como nos lembram dois escritores imortais, dos que souberam destilar a essência da acção colectiva, em verso ou em prosa

Enquanto houver camaradas nos locais onde se trabalha, onde se cria tudo o que tem valor, há esperança. É simples, creio, e tudo parece tão complicado no dia 6 de Março de 2021. 

Tudo isto para dizer: parabéns de um amigo ao Partido que faz hoje cem anos.

sexta-feira, 5 de março de 2021

#mamadoubafica


E mais duas contribuições de gente da casa. Aqui e acolá.

António Costa é óptimo a fazer discursos de esquerda

Nesta entrevista, o Primeiro-Ministro e líder do PS reproduz muitas posições que há anos são subscritas pela esquerda em Portugal: a necessidade de reforçar o SNS (mais investimento, mais pessoas, carreiras mais atractivas), de reduzir a precariedade no mercado de trabalho, de estender a protecção social a segmentos da população dela excluídos, de responder aos problemas de habitação e de exclusão social nos bairros periféricos na zonas metropolitanas. Costa enfatiza os problemas que decorrem da inserção de Portugal no euro e dos acordos comerciais da UE com países terceiros – em particular, o seu impacto na indústria nacional. Afirma mesmo que “esta crise foi o maior atestado de falhanço das visões neoliberais”. 

O problema de Costa nunca foi desconhecer a agenda ou os slogans da esquerda. Um dos segredos do seu sucesso é a capacidade de reproduzir o discurso de tradições políticas que não são a sua. 

Há quem ache que estes discursos são sinceros, outros duvidam. É pouco relevante. A experiência mostra que Costa liga o botão do discurso de esquerda quando as circunstâncias exigem. O contexto actual é fácil de perceber – e a entrevista revela-o à transparência. Aproximam-se eleições autárquicas (mais difíceis do que até há pouco se esperava) e a necessidade de aprovar orçamentos de Estado sem maioria no parlamento. É preciso pressionar BE e PCP a cooperar com o PS. Para isso, há que convencer os eleitores de esquerda de que o projecto de Costa para o país é o que desejam. 

O problema de António Costa é que já governa desde 2015. As declarações programáticas já não chegam. SNS, precariedade, protecção aos desempregados, habitação, combate à exclusão, são problemas que exigem coragem e medidas. Se elas não aparecerem ou não convencerem, de pouco servem os discursos e as bandeiras.


Avantes

O mais antigo e o mais recente, de ontem, números do Avante. Celebrou, no dia 15 de fevereiro, os 90 anos de existência. Durante mais de quatro décadas circulou clandestinamente, um feito de militância sem igual na história da imprensa. 

Também foi graças a esta persistência que existe há mais tempo em democracia do que existiu durante o fascismo. Que outro jornal tem dado mais atenção às lutas laborais por esse país afora, sem as quais de resto nunca houve democracia? 

A todos os que o fizeram e fazem, o agradecimento de um leitor regular na véspera de outra data redonda.   


quinta-feira, 4 de março de 2021

Um preço social muito grande


«Já há muito tempo que nós sentimos a necessidade de reabertura das escolas. Claro que não viemos antes a público defender a nossa posição porque compreendemos que durante um período essa abertura seria impossível, ou difícil, devido à situação vivida no país. Mas neste momento o encerramento das escolas está a ser demasiado prolongado. As crianças não são os grandes transmissores da infeção na comunidade».

Das declarações de Inês Azevedo, presidente da Sociedade Portuguesa de Pediatria (SPP), ao Jornal da Noite, ontem na SIC. Esta associação, juntamente com a direção do Colégio de Pediatria da Ordem dos Médicos (CEP-OM) e a Comissão Nacional da Saúde Materna, da Criança e do Adolescente (CNSMCA), subscreveram uma Carta Aberta em que assinalam a urgência de reabertura faseada das escolas e «a integração das crianças em atividades adequadas às suas reais necessidades», alertando para o impacto que «a doença covid-19 tem sobre estas ao nível do desenvolvimento, da aprendizagem, dos comportamentos, das rotinas e no relacionamento familiar e social».

Estas organizações lembram ainda que «desde o início se verificou que as crianças eram pouco afetadas, apresentando em regra doença ligeira, com casos muito esporádicos de doença grave, e cedo se percebeu que, em contraste com outras doenças virais mais conhecidas, contribuíam pouco para a disseminação da doença (...), não se tendo verificado surtos relevantes com origem nos estabelecimentos de ensino», em resultado da eficácia dos planos definidos para o início do ano letivo e da «boa adesão de profissionais escolares e de alunos» aos mesmos.

Considerações em linha, aliás, com as da presidente da Associação Portuguesa de Epidemiologia (APE), Elisabete Ramos, que afirmou recentemente que «os benefícios de reabrir as escolas são muito maiores do que o risco», alertando para o facto de este confinamento estar a deixar «consequências graves a vários níveis e está também a contribuir para agravar as desigualdades sociais», defendendo por isso que «fechar escolas é sempre a última medida», uma vez que o seu «preço social é muito grande».

O preconceito custa vidas


Num mundo de pernas para o ar, uma jornalista opina, sob a forma de notícia, no início de Fevereiro: “a Sputnik foi prejudicada pela propaganda do Kremlin”. Na realidade, o acesso a esta vacina foi prejudicado pela russofobia na UE. 

Hoje, ficámos a saber, através da Lusa, que a “Agência Europeia de Medicamentos começou a analisar a vacina russa Sputnik V”. A vacina existe há meses e vários Estados da UE já a começaram a receber, da Hungria à Eslováquia. 

Entretanto, o Estado português consegue ser altamente eficaz na vacinação, em linha com o que se pode esperar do SNS, e ao contrário do que prognosticaram alguns ignorantes com tempo de antena bem pago. O problema é que, graças ao fiasco da improdutiva UE, está tudo atrasado e o governo está demasiado conformado.

quarta-feira, 3 de março de 2021

Cem anos de história sem caricaturas


Há partidos que, não sendo nunca apenas ação política no presente, nem apenas história, são muito imbricadamente as duas coisas. É o caso do PCP (...) Se houve partido que melhor assegurou condições para que em Portugal se resistisse à ditadura foi o PCP (...) Quem repete há quase meio século que os comunistas portugueses queriam implantar uma ditadura “de tipo soviético”, era bom recordar que, dos oito objetivos fixados para a “revolução democrática e nacional” que o PCP preconizava para Portugal, cinco foram adotados no programa do PS de 1973; onde não havia coincidência, o do PS parecia mais radical. Da “destruição do estado fascista e instauração de um regime democrático” ao “reconhecimento aos povos das colónias o direito à imediata independência”, à Reforma Agrária ou à “liquidação do poder dos monopólios”, os comunistas conseguiram atingir quase todos os seus objetivos porque a grande maioria do povo assim o quis nas eleições de 1975, e porque uma amplíssima maioria de 93% dos deputados constituintes, incluídos os do PS e do PPD, aprovaram uma Constituição que consagrou esses objetivos. Depois das tensões do período revolucionário, empenhado em lutas sociais por todo o país, abertamente perseguido no Norte, no Centro e nas ilhas, ameaçado de ilegalização por alguns dos vencedores do 25 de Novembro, o PCP soube participar desse amplo consenso constitucional, o mesmo que há tantos anos se tende a omitir, como se ele não tivesse dado forma legal à democracia portuguesa em tudo quanto de original ela (ainda hoje) tem (...) Nenhuma caricatura do PCP estalinista e ortodoxo aguenta semelhante percurso. Não é por acaso que se faz 100 anos e se está presente na nossa história coletiva.

Manuel Loff, Cem anos, Público, 2 de Março de 2021.

terça-feira, 2 de março de 2021

O encerramento das escolas foi decisivo para a redução da mobilidade?

Ao contrário do que se quis fazer crer (ver por exemplo aqui, aqui, aqui ou, mais recentemente, aqui), o encerramento das escolas, a 22 de janeiro, não foi o fator decisivo para a melhoria da situação pandémica em Portugal. De facto, a redução do Rt (Índice de Transmissibilidade) inicia-se a 18 de janeiro, antes portanto do fecho das escolas e pouco depois da adoção das primeiras medidas de confinamento, no dia 15 (como já demonstrado aqui).

Dados recentes publicados pelo INE, sobre níveis de mobilidade, vêm reforçar esta ideia, sendo de realçar, isso sim, o impacto das primeiras medidas de confinamento, adotadas a 15 de janeiro. De facto, entre os dias 15 e 22 a percentagem de pessoas que «ficou em casa» passa, em sete dias, de 21,6% para 28,2%, sugerindo que é esse impulso que se prolonga para lá de 22, até 31 de janeiro, data em que se atinge o máximo de pessoas em casa (33%). Ou seja, não só o encerramento de escolas não foi decisivo para a diminuição do número de contágios, como nem sequer parece ter vindo a reforçar essa tendência através de um esperado contributo, indireto, para a redução da mobilidade.


Na altura, Marcelo Rebelo de Sousa justificou o fecho das escolas com a necessidade de dar um «sinal político» capaz de reforçar, junto da população, a consciência da gravidade da situação pandémica e a premência de reduzir ao máximo a mobilidade e os contactos sociais. Isto é, reconhecendo que o problema não era o de as escolas serem focos de contágio relevantes (que não são), mas sim a necessidade instrumental (e por isso sacrificial, como bem refere Susana Peralta), de reter as crianças em casa para reforçar o confinamento dos pais. Reforço esse que, de acordo com os dados da mobilidade, não aconteceu.

Ora, sabendo que o encerramento de todos os estabelecimentos de ensino se tornou na altura inevitável, mas reconhecendo hoje que o seu efeito poderá ter sido irrelevante para a melhoria da situação, importa com redobrado sentido não desvalorizar os impactos brutais do prolongar dessa medida (nas aprendizagens, no agravar das desigualdades e na saúde das crianças, sobretudo das mais desfavorecidas), e começar portanto a reabrir as escolas, o mais rapidamente possível.

Luta com distinção

Susana Peralta é a máxima consciência social da economia ortodoxa, com a sua ênfase na qualificação da oferta, através do “investimento em capital humano”, insistindo nas falhas mais ou menos localizadas de mercado. Nos seus artigos, no Público, tem visibilizado os subalternos que pagam a crise pandémica, a começar nas crianças pobres, e são quase um quinto as que conhecem a pobreza, sendo uma das principais vozes a favor da abertura progressiva das escolas. Em ruptura com a sua anterior posição, favorável à política orçamental de Costa e de Centeno, tem criticado a política orçamental de Costa e de Leão, que não respeita compromissos políticos, nem acode ao país nos tempos e nos montantes necessários, valorizando as questões da procura. 

Numa entrevista, que já fez correr muita tinta, ao jornal i, defende um imposto especial sobre “quem não perdeu rendimentos com a pandemia”. Diria que precisamos de aumentar a progressividade em sede de IRS, de englobar os rendimentos em pé de igualdade, pelo menos, mas também de lançar um imposto especial sobre os altos rendimentos, sobre a riqueza, das contas chorudas, dos que não estão a consumir ou a investir, aos activos mobiliários e imobiliários valorizados à boleia da política monetária sem direcção orçamental suficiente. 

Num país sem soberania monetária, os instrumentos de política são muito mais limitados, quase inexistentes, não o esqueçamos. Não nos podemos conformar com um enquadramento europeu que nos garante grupos inteiros perdidos, uma periferização persistente, como sublinha Jorge Bateira. Seja como for, a falta de visibilidade de propostas fiscais progressivas, neste contexto, diz muito sobre os direitos dos de cima, e sobre as correlativas obrigações dos de baixo, num país brutalmente injusto. 

O que acontecerá a uma intelectual pública quando descobre as classes e as suas lutas no presente contexto? Não sei, depende, mas sei que, se vai por aí, convém fazer distinções de forma cuidadosa. De facto, há burgueses que não estão em teletrabalho e há trabalhadores em teletrabalho que não são burgueses de nenhum ponto de vista, sendo aliás a maioria, como não pode deixar de se reconhecer. É claro que há classes altas profissionais em teletrabalho, comparativamente numa situação confortável, estando nos últimos percentis de rendimento laboral, tendo rendimentos de capital relevantes e julgando fazer parte de uma nebulosa classe média. 

Estes segmentos burgueses estão amplamente representados no que passa por debate público, tendendo, com excepções, a universalizar a sua situação: sei lá, professores catedráticos, advogados de negócios, gestores, jornalistas de elite e outros profissionais que operam no topo de contextos laborais cada vez mais desiguais, incluindo à boleia da proletarização das profissões intelectuais e da escassa acção colectiva. Esses seriam parte do alvo, incluindo fiscal, de facto. Mas não esqueçamos a correlação de forças e de fraquezas, a violência da reacção, que já se pressentiu, e daí a necessidade de fazer distinções socioeconómicas rigorosas e politicamente produtivas. 

Entretanto, já subscrevi a petição para dar prioridade à escola, apesar de não compreender a questão das máscaras em crianças.

Falta de quadros

Só alguém muito carenciado de gente capaz é capaz de pensar que Pedro Passos Coelho ainda tem alguma coisa a oferecer ao país. E só um jornal enviesado faz um alarde destes na 1ªpágina, sem revolta dos seus jornalistas.

 

Mas a direita é assim: não tem de ter programa, não tem de explicar o que quer que seja, não tem de ter ideias para mudanças estruturais. Não tem de prometer nada: basta defender o que existe. Ou, pior, basta dizer e defender as ideias que vêm de fora, que em geral não têm em conta os interesses nacionais de Portugal. Essa é a sua função conservadora.  

Foi assim nos anos 70, quando a direita se colou às reformas trazidas pelo FMI e fez delas cavalo de batalha nos governos seguintes, nomeadamente na redução de intervenção do Estado, na desarticulação  do sector público nascido das nacionalizações e na legislação laboral, para que se quebrasse a espinha pública e a presença sindical. Foi assim nos anos 80, quando a direita cavaquista se tornou o carro de assalto das ideias neoliberais em Portugal, com o fim de desmantelar tudo o que cheirasse a colectivo, a esforço público, a intervenção do Estado e ainda barafustava quando o Tribunal Constitucional impedia a subversão da Constituição. Foi isso que aconteceu nos anos 90 e início do século XXI com o abraço de urso da moeda única e de toda a arquitectura institucional, que acarretou uma mutação económica silenciosa mas estrutural nas opções sectoriais do país (que passou a basear-se nos serviços) e uma transferência - sem discussão - de poderes soberanos para uma esfera comunitária, onde Portugal mal risca, tudo sem efeitos de monta no défice externo. Foi na sequência disso que se abriu as portas a um poder desmedido nas empresas - mudando-se de paradigma no Direito  Laboral - com a aprovação do Código do Trabalho em 2003, a pretexto da simplificação da legislação laboral dispersa, o que levou à estagnação salarial sem efeitos de monta no défice externo. Foi isso que aconteceu em 2010/2015, quando a direita abraçou as pressões da União Europeia para que Portugal fosse ajudado pela troica e iniciasse a marcha de um rolo compressor sobre a segurança no emprego e a protecção dos desempregados, que levou a uma escalada nunca vista do desemprego e da emigração, tudo para que fosse possível baixar salários e esvair a intervenção sindical, tudo sem efeitos duradouros no défice externo.

Ao fim de quatro décadas de vagas consecutivas de política de direita, em que a política fiscal não  combateu as desigualdades sociais que iam engrossando e agravou-as ao fazer pesar o fardo de quem vive do seu trabalho (no IRS, salários e pensões quase pagam a receita cobrada), estamos num belíssimo ponto para de novo apostar num cavalo arrogantemente liberal (ex-neoliberal), sem visão alguma para o país.  

Veja-se o que deu quando se deu largas à sua língua, numa altura em que a direita defendia a redução rápida do défice e dívida orçamentais como política de eficiência e libertação de verbas para a sociedade e,  portanto, sabia que iria cortar em tudo:


segunda-feira, 1 de março de 2021

Querido diário - Como acabar com o desemprego trabalhando de graça


A citação pode ser encontrada aqui. 

Na realidade, ela retrata bem o que acontece quando se coloca um contabilista liberal a gerir uma economia. Pagar menos salários reduz os custos das empresas, mas reduz ainda mais os rendimentos de outras que vivem dos gastos de quem recebe salários. Mas tentemos fazer um resumo. 

A 2 de Março de 2013 e fazendo jus às manifestações de 15 de Setembro de 2012 (contra as mexidas na TSU que cortavam os salários em 7% para os transferir para as empresas), realizaram-se mais manifestações de protesto no país contra as políticas de austeridade, traçadas no Memorando de Entendimento com a troica e que o Governo PSD/CDS de Pedro Passos Coelho abraçara como suas. Mais: abraçara como sendo as políticas estruturais que iriam salvar a competitividade do país. 

Foi, aliás, exactamente isso que Passos Coelho foi dizer no debate parlamentar quinzenal que se realizou no dia seguinte, surdo às vozes da rua.  

Durante desse debate, Passos Coelho autoelogiou-se por a União Europeia ter aceite uma flexibilização no pagamento do empréstimo à troica (ver aqui), sem perceber ainda aquilo que a UE já percebera: a encrenca que estavam a ser os programas de austeridade

“Só é possível obter esta disponibilidade dos nossos parceiros para nos ajudar a regressar a financiamento não oficial na medida em que formos bem sucedidos a executar o nosso programa de ajustamento”, destacou Passos Coelho. “É preciso prosseguir com firmeza e resiliência o caminho que temos vindo a seguir”, acrescentou. Uma flexibilidade que vai surgir na medida em que “formos credíveis a corrigir os desequilíbrios, e na medida em que a nossa atitude não seja, como alguns querem, a de mudar de caminho e renegociar tudo, mas cumprir o essencial dos nossos objectivos. Esta é a primeira conclusão” que se retira da decisão tomada em Bruxelas, que ainda não forneceu “uma solução final, do ponto de vista técnico”. A outra conclusão que se deve retirar é que os parceiros europeus “instam-nos a seguir o caminho das reformas porque sabem que este resultado só será duradouro para futuro na medida em que seja acompanhado de uma reforma estrutural importante”, prosseguiu Passos Coelho. “Foi a ausência dessa reforma, aliada a falta de competitividade económica, a um nível elevado de endividamento” que conduziu o País a esta situação. 

 

Um tipo de discurso que volta a ouvir-se de novo. 

A questão da competitividade essa nunca chegou. E ainda esperamos por ela, apesar de o governo de António Costa insistir no grosso do pacote laboral de Passos Coelho (Agosto de 2012), para não ferir susceptibilidades em Bruxelas. Já sobre o salário mínimo, a frase de Passos Coelho surgiu depois de o secretário-geral do PS António José Seguro ter defendido o seu aumento como condição para a economia crescer. Como defendia a CGTP, o salário mínimo deveria ter chegado aos 500 euros em 2011, mas ainda estava abaixo disso: 

"Estamos em Março de 2013 e o salário mínimo continua nos 485 euros, o que, retirando as contribuições obrigatórias para a segurança social, significa qualquer coisa perto de 432 euros",  disse na altura o sceretário-geral da central sindical Arménio Carlos. Sobre a importância de aumentar o SMN ver aqui (procurar Barómetro nº12).

No Parlamento, Passos Coelho defendeu-se contra-atacando, leviana e cegamente, como faria qualquer crente deputado do partido da "Ilusão Liberal".

“Faço eu e o meu Governo mais para combater o desemprego naquilo que ele tem de estrutural do que o senhor deputado faz”, quando diz que “a primeira condição para ter política de crescimento é aumentar o salário mínimo”.

No 1º trimestre de 2013, segundo o INE, havia 927 mil desempregados, mas o número dos trabalhadores subutilizados atingia 1,419 milhões de trabalhadores. 

“Quando um país enfrenta um nível elevado de desemprego, a medida mais sensata que se pode tomar é exactamente a oposta. Foi isso que a Irlanda fez no início do seu programa”, recordou o primeiro-ministro. “Mas a Irlanda tinha um nível de salário mínimo substancialmente superior ao nosso”, reconheceu. “Foi por isso que o anterior Governo não incluiu essa cláusula” no Memorando de Entendimento, projectou Passos Coelho, e foi também por isso que o actual Governo não o fez. 

Só faltou esclarecer o seu valor, mas não o fez. Como descreveu o jornalista Bruno Simões no mesmo artigo: 

"a Irlanda estabelece legalmente o salário mínimo por hora trabalhada e por escalão de idade e de formação. Desceu o seu valor de referência para os adultos qualificados em 2010, que passou de 8,65 euros por hora para 7,65, e repôs agora o valor de então. Nos cálculos do Eurostat – feitos a partir de um método que permite comparações entre os vários países e que não coincidem com os valores legais (paridades do poder de compra) – a Irlanda é dos países europeus que garantem salário mínimo mais elevado: 1462 euros mensais, que comparam com 566 euros em Portugal". 

Passos Coelho, mais a diante no debate, chegou mesmo a defender - naquele mantra sempre dito pelos deputados à direita - que aumentar o SMN provocaria o desemprego e que só se deve discutir o aumento do SMN quando o País tiver condições para tal, quando "o tecido produtivo tenha condições para o fazer".

"Não deixaremos em sede de concertação social de discutir o aumento do salário mínimo nacional levado pelos aumentos de produtividade, numa altura em que o país esteja em condições de estar a ultrapassar, a dobrar o nível de atividade, que nesta altura ainda é recessivo e que nós queremos inverter para recuperação". 

Na verdade, isso nunca aconteceu. O ministro da Economia, Álvaro Santos Pereira - que chegou depois a ser economista-chefe interino da OCDE até 2016 - ano em que foi agraciado por Cavaco Silva com a Grã-Cruz da Ordem do Infante D.Henrique e passou para responsável dos estudos por país da OCDE - prometeu  uma ronda na concertação social para discutir o salário mínimo. O que nunca se realizou. O salário mínimo seria apenas aumentado para 505 euros em 2014 e parcialmente pago com verbas da Segurança Social... 

Procure-se aqui o Caderno nº9 (pag.43 e 45) que se dedica às actas das reuniões da Comissão Permanente da Concertação Social e revela os subterfúgios usados para adiar sem prazo a questão:

Obrigadinho, uma vez mais


É caso para dizer: obrigadinho, uma vez mais. Com honrosas excepções, a história do fiasco das vacinas na UE tem sido ignorada por uma comunicação social servil e que prefere o sensacionalismo fácil dos casos locais. É como se a comissária Elisa Ferreira fosse correspondente em Bruxelas nos tempos livres.

É claro que o governo não tem ajudado, com o seu conformismo assustador de política externa, em contraste com vários países da UE, que começam a procurar alternativas nos modelos públicos de produção russos e chineses, entre outros. 

António Costa prefere continuar a ser bom aluno de mestres cada vez piores, entre anúncios, transferências de responsabilidades e um austeritarismo larvar.

O que vai acontecer ao emprego após a pandemia?


Qual vai ser o impacto da pandemia na evolução do emprego na próxima década? Foi a esta pergunta que o Gabinete de Estatísticas do Trabalho dos EUA procurou dar resposta num estudo recentemente divulgado. Para isso, os investigadores analisaram a evolução do emprego na próxima década e apresentam uma previsão do tipo de empregos que se pode vir a expandir, bem como os que tenderão a diminuir ou desaparecer. Embora estas projeções devam ser analisadas com bastante prudência, já que estão sujeitas a enorme incerteza, podem ainda assim dar-nos algumas pistas sobre as mudanças estruturais que ocorrerão ao longo dos próximos anos.

A principal conclusão do estudo é que a destruição de emprego será bastante mais expressiva entre os trabalhos que requerem menos qualificações. A tendência não é propriamente nova, mas a pandemia parece tê-la acelerado: é razoável assumir que o trabalho à distância, a procura por serviços científicos e tecnológicos e o investimento na área da saúde pública crescerão tendencialmente mais do que caso a pandemia não tivesse ocorrido. É por isso que o estudo estima que as 10 profissões com maior crescimento até 2029 sejam todas nas áreas dos cuidados de saúde, ciência médica e tecnologias. Entre as profissões que mais poderão cair, encontram-se as relacionadas com a hotelaria ou a restauração. Em geral, o estudo prevê que as profissões mais mal pagas são as que vão sofrer maior quebra na próxima década, ao contrário do que se previa antes da pandemia, como se vê no gráfico ao lado. O potencial de aumento das desigualdades é evidente.

Mas a verdade é que estas já vinham de trás e têm vindo a acentuar-se nas últimas quatro décadas. Antes da pandemia, os relatórios sobre a evolução salarial nos EUA e no conjunto dos países da OCDE eram unânimes: o fosso entre os muito ricos e os muito pobres aumentou consideravelmente e a fração dos salários no PIB (isto é, a parte da riqueza produzida anualmente que vai para o fator trabalho) tem vindo a cair. A tese que reunia maior consenso entre economistas convencionais é a de que esta tendência se explica pelo progresso tecnológico, que estaria a favorecer o capital físico e os trabalhadores mais qualificados e a penalizar os restantes. O problema é que esta visão neoclássica, que assume que os salários e lucros são determinados pela produtividade marginal de trabalhadores e capital (ou seja, pelo seu contributo relativo para a produção), depende de um conjunto de hipóteses muito pouco realistas, como a existência de mercados perfeitamente competitivos ou o pleno emprego dos fatores. Outras correntes, que procuram uma resposta sistémica para o problema e dão ênfase ao papel das instituições realmente existentes, têm apontado para o impacto negativo nos salários de fatores como a globalização, a financeirização e as reformas laborais orientadas para a flexibilização do mercado trabalho.

E essa tese até já é defendida por alguns dos mais insuspeitos economistas. Prova disso é o estudo publicado em 2020 por Anna Stansbury e Larry Summers, ex-secretário do Tesouro dos EUA conhecido pelo seu trabalho na teoria económica convencional e pelo seu papel nas reformas liberalizantes da presidência de Bill Clinton. Stansbury e Summers olharam para o "ambiente macroeconómico da última geração" e identificaram entre as principais tendências o aumento da rentabilidade e valorização bolsista das empresas, o fraco crescimento salarial e a queda da fração dos salários no PIB. O motivo, avançam os autores, é a quebra generalizada do poder negocial dos trabalhadores, sobretudo devido ao enfraquecimento dos sindicatos e às reformas de desregulação laboral. Até Summers parece reconhecer que o declínio da sindicalização e a flexibilização das leis do trabalho estão por trás do aumento expressivo da desigualdade, como muitos já alertavam antes. Os dados, de resto, não deixam grandes dúvidas.

Apesar disso, o aumento das desigualdades está longe de ser inevitável. A tendência pode ser combatida com políticas públicas de promoção do pleno emprego e valorização dos direitos laborais, sobretudo tendo em conta os desafios da próxima década: se se pretende que a recuperação da crise se faça de acordo com critérios de justiça social e sustentabilidade ambiental, o financiamento público é decisivo; e se os empregos mais qualificados vão ser favorecidos, é preciso preparar as pessoas para essas mudanças. Isso implica mudar a forma como se tem olhado para a gestão das finanças públicas e reconhecer que, num contexto em que existem recursos na economia que não estão a ser empregados, os Estados podem e devem reforçar o investimento público que dinamiza a produção e o emprego. No fim do dia, o futuro do emprego é o que fizermos dele.

domingo, 28 de fevereiro de 2021

Como se o confinamento fosse a cura

Há apenas quatro dias, a 24 de fevereiro, Jorge Buescu considerou que a reabertura das escolas é «mais do que imprudência, é quase procurar problemas sérios», advertindo para ser «quase garantido que poderá haver uma quarta vaga» com um Rt (índice de transmissão) de 0,98. Repito, estas declarações têm apenas quatro dias, quando o ritmo abrupto de descida dos diferentes indicadores, desde o pico de janeiro, não é de hoje e não deixa margem para dúvidas quanto à melhoria da situação pandémica em Portugal.

É consensual, de facto, que as metas adiantadas como condição para desconfinar serão atingidas já em meados de março, fazendo por isso bem o Governo em anunciar o plano de desconfinamento no próximo dia 11, começando evidentemente pelas escolas. Um exercício simples - que não pretende constituir-se como «projeção» nem «modelo» - a partir da média de variações entre 20 e 26 de fevereiro, sugere que antes ao final de março se chegaria a zero em vários indicadores (ver gráfico). Chegaria, claro, porque todos estes exercícios tendem a ser rígidos (ou especulativos) nos seus pressupostos, lidando mal com a complexidade de fatores e com a própria dinâmica da realidade.


Recorde-se, já agora, que o Jorge Buescu que por estes dias clama contra o desconfinamento e a reabertura das escolas, é o mesmo matemático que, no início da pandemia, avançava com projeções dantescas - sempre tão apetitosas para o sensacionalismo de alguma imprensa - sobre a evolução da mesma em março do ano passado (pouco depois de ter dito que era preciso «acabar de vez com o vírus da corono-histeria»).

De acordo com uma projeção sua então publicada no Expresso, Portugal poderia atingir, no final de março de 2020, 60 mil casos de contágio (sem adoção de medidas); cerca de 19 mil casos (seguindo a estratégia francesa); ou cerca de 4 mil casos (adotando a estratégia italiana, mais severa).

Numa projeção posterior, publicada no Observador a 15 de março (gráfico aqui ao lado), o matemático mantinha apenas os dois primeiros cenários, entendendo que «o cenário "à italiana"» estava já fora de questão, uma vez que o país deveria «ter tomado as medidas italianas há uma semana». Curiosamente, foi deste cenário rejeitado que a realidade mais se aproximou, com cerca de 4 mil casos no final do mês.

Voltando a 2021, vale a pena sublinhar que a descida abrupta dos diferentes indicadores, desde o pico de janeiro, tem paralelo na subida vertiginosa registada depois de 25 de dezembro, reforçando a hipótese da particular - e episódica - conjugação de factores adversos no Natal, a começar pelo relaxamento das restrições face às celebrações da época. E não, como muitas vezes ainda se considera, o resultado de um suposto efeito da ausência de confinamento em outubro ou novembro, numa espécie de lógica endémica da pandemia, em que assentam modelos fechados sobre si mesmos e, por isso, propensos ao medo e alarmismo. Como se o confinamento, total e obsessivo, e não a vacina, fosse a cura. Aliás, desse ponto de vista, mais importante que confinar ou desconfinar nas semanas que antecedem a Páscoa, será talvez preciso acautelar devidamente o fim-de-semana da própria Páscoa.

Purga



sábado, 27 de fevereiro de 2021

Lénine fez o melhor que pôde


Bem sei que Lénine tem as costas largas, sendo submetido a um nível de exigência ético-política que não se coloca aos internacionalistas liberais da mesma época, tantas vezes racistas e cúmplices do colonialismo, capitaneados por Woodrow Wilson e quejandos. E isto em contraste com alguém que inspirou, na teoria e na prática, tantos anti-colonialistas e anti-imperialistas, desiludidos com a circunscrição fundamentalmente europeia da ideia de autodeterminação nacional, em 1919, na Conferência de Paz de Paris. Num dos seus sempre primorosos textos, o historiador Rui Bebiano denunciou: 

“Uma lógica [anti-americana] que continua a colocar dogmas e preconceitos à frente da realidade, definindo os EUA como inimigo principal de todos os projetos progressistas. Vale a pena recordar que, em ‘Imperialismo, estádio supremo do capitalismo’, de 1917, Lenine deu o mote a esta perpétua fixação da América como inimigo principal.” 

Quem ler o livro clássico de Lénine verificará que os alvos principais são os capitalismos francês, britânico e alemão, até porque eram, na véspera da Primeira Guerra Mundial, os grandes exportadores de capital, mais de três quartos, e correlativamente as grandes potências, cuja política externa tinha desembocado nesse “crime contra a humanidade”, a expressão que usa no justamente famoso Decreto da Paz, o da proposta de paz, sem anexações e sem indemnizações, a 8 de Novembro de 1917. 

É claro que Lénine não é caso único, na peugada de John Hobson, autor do livro igualmente clássico nesta literatura do início do século XX, podendo ler-se também com proveito o que Rosa Luxemburgo escreveu. É hoje bem mais popular, até porque foi assassinada a tentar conquistar o poder e não há nada melhor do que esta forma de derrota para uma reputação histórica no chamado marxismo ocidental. O chamado marxismo oriental, o que construiu Estados e cujo poder foi mudando o sistema internacional, só raramente é resgatado do esquecimento a ocidente.

O imperialismo tem de continuar a ter fundações na evolução da economia política e não em obsessões com países em particular, considerados de forma global. É verdade que os EUA são referidos em múltiplas ocasiões no livro de Lenine, dada a importância crescente de um país onde a centralização e concentração de capital, os trusts, eram inauditas. 

Como sublinhou o historiador Adam Tooze, num livro de história internacional profundamente crítico dos bolcheviques chamado Deluge, houve, quando muito, subestimação do poder do capitalismo dos EUA, o país que passaria a ser o grande bastião desse sistema internacional, como Bebiano acaba por reconhecer, a grande potência credora a seguir à grande guerra, para cujo desenlace contribuiu decisivamente. Aliás, será a sua intransigência em relação às dívidas aliadas que explicará parte da intransigência francesa em relação à Alemanha, tão criticada por Keynes, um economista liberal que aliás mereceu apreciação positiva de Lénine neste contexto.

Os bolcheviques terão até uma certa admiração pela modernidade do fordismo, que procurarão imitar nos seus termos. Antonio Gramsci, cuja reputação parece muitas vezes ser mais função do destino trágico nas prisões do fascismo do que da leitura de uma obra tão tributária do método de Lénine, falará de americanismo.

Seja como for, a perspectiva do imperialismo de Lénine tem sido corroborada por vozes insuspeitas, não propriamente marxistas. De facto, quem ler os trabalhos dos dois grandes especialistas na evolução histórica das desigualdades económicas, Thomas Piketty e Branko Milanovic, encontrará referências breves, mas elogiosas, ao poder explicativo das hipóteses de Lenine naquela época: das desigualdades internas cavadas às hierarquias internacionais entrincheiradas. 

A geometria do imperialismo muda: basta pensar que a principal potência imperialista dos nossos dias, os EUA, há muito que importa capital, à boleia de défices de balança corrente, endividando-se na sua moeda, o mais parecido que existe com uma moeda mundial, privilégio exorbitante. Foi nos últimos tempos o consumidor e poder monetário de último recurso e o poder armado de primeiro recurso do capitalismo neoliberal. Todo o mundo é composto de mudança. 

É claro que Lénine fez o melhor que pôde no tempo que foi o seu: nas suas mãos, o marxismo foi uma teoria viva, em actualização constante, usada para compreender o capitalismo e para uma prontidão superadora que colocará o acento tanto na classe como no povo, categoria mais abrangente. Não digamos adeus a este espírito indómito, numa época onde os choques e as mudanças serão tumultuosos.

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

Gastar? Não Gastar? Gastar demasiado? Notas sobre o debate macroeconómico


Como as “bolhas” das redes sociais não são muito dadas a textos (um pouco mais) longos e os blogues estão, hoje, sobretudo dependentes do tráfego das primeiras, decidi experimentar com a nova moda das newsletters no Substack, recuperando o velhinho email, para escrever sobre Economia Política e Desenvolvimento. Sendo gratuita, a periodicidade da newsletter será “quando tiver tempo e alguma coisa para dizer”. Se tiverem paciência e não se importarem em receber um email de vez em quando, subscrevam aqui: https://nunoteles.substack.com/

Tudo será replicado, no entanto, aqui no Ladrões. Fiquem com o primeiro artigo.

Ziguezagues

É certo que a pandemia mudou muita coisa nas nossas vidas, mas as viragens nas posições de política económica parecem dar-se a uma velocidade difícil de acompanhar. Ainda antes da crise pandémica, várias foram as vozes, da imprensa económica internacional às instituições financeiras internacionais, que se manifestaram sobre a necessidade de uma política orçamental mais expansionista. A crise pandémica naturalmente veio reforçar estas recomendações. Começámos então a ouvir falar de uma mudança de paradigma na teoria e política macroeconómica. Tais recomendações são festejadas pela esquerda, aparentemente vingada na sua oposição à austeridade e nas suas propostas de aumento das despesas públicas. Entretanto, dois dos defensores de uma política orçamental mais activista, os eminentes economistas neo-keynesianos, Larry Summers e Olivier Blanchard, vêm agora alertar para os exagerados gastos anunciados por Biden nos EUA. Voltaram atrás?

Larry Summers é uma eminência parda da elite norte-americana, com um longo currículo nos círculos de poder, que, aliás, gosta de alardear. Esteve no centro das reformas neoliberais da presidência Clinton – a lei Glass-Steagall, oriunda do New Deal, de regulação bancária foi repelida durante o seu mandato enquanto ministro das finanças norte-americano – e é apontado como um dos responsáveis pela timidez do plano de recuperação de Obama em 2009. Alguns anos mais tarde, voltou à ribalta nos debates económicos, recuperando o conceito de “estagnação secular” e consequente necessidade de políticas de estímulo orçamental em larga escala. Face à proposta da Administração Biden de um programa orçamental que anda em torno de 10% do PIB norte-americano (mais do que toda a economia canadiana), Summers veria finalmente as suas propostas colocadas em prática. Mas, não. Com um artigo no Washington Post, Summers avisa que este pacote é demasiado ambicioso e terá, provavelmente, como efeito aumentar a inflação e as taxas de juro.

Outro economista neo-keynesiano, Olivier Blanchard, um dos primeiros defensores do programa de “desvalorização interna” em Portugal e economista-chefe do FMI nos anos das suas intervenções no Sul da Europa, também teve uma mudança de estado de alma em relação à austeridade. Face ao ritmo medíocre de crescimento económico das economias mais desenvolvidas, o economista fez um pequeno mea culpa em relação à política imposta pelo FMI e passou a defender que, dada as baixas taxas de juro praticadas um pouco por todo o mundo, se exigia aos Estados que gastassem mais, já que não existiam riscos de insustentabilidade da dívida pública. Em Dezembro passado, anunciava mesmo a mudança de paradigma macroeconómico. Agora, vem secundar a opinião de Summers num “fio” do Twitter, alertando para o provável sobreaquecimento da economia e aumento da inflação que o plano de Biden provocará.

PRR: mais um passo no caminho da servidão


Com a vacinação das populações dos EUA e da UE nas mãos das grandes farmacêuticas, com a quase nula vacinação dos países do grande sul, o que permite por muito tempo o aparecimento de estirpes mais perigosas, portanto ainda bem longe de sabermos quando será possível retomarmos uma vida próxima do normal, começamos a ser informados das preocupações dos ideólogos do sistema quanto ao nível da dívida pública e a sua correcta gestão.

Evidentemente, perante uma situação de guerra ou calamidade, foi preciso rasgar os véus institucionais criados para fingir que Estados soberanos, dotados de um banco central e emitindo dívida na sua moeda, dependem dos mercados financeiros. Com maior ou menor contorcionismo de procedimentos para que o público não perceba exactamente o que se passa, a despesa pública tem sido feita com o dinheiro emitido pelos bancos centrais – como sempre se fez, ainda que de forma mais ou menos camuflada, nos EUA e no Japão – e isso é uma situação que o sistema neoliberal não pode permitir que se generalize.


Na sequência desta pandemia, abolida a independência política dos bancos centrais, os governos poderiam começar a investir muito mais no Estado de bem-estar (saúde, educação, habitação, emprego, segurança social), na investigação científica ao serviço da saúde e da humanização do trabalho, na requalificação das carreiras da administração pública com recrutamento de quadros com elevadas qualificações, e poderia retomar também a política económica anti-cíclica, redescobrindo o planeamento estratégico para o desenvolvimento, etc. Deixaríamos de perguntar “haverá dinheiro?” porque o foco do debate político passaria a ser o bem-estar dos cidadãos, a preservação da biosfera, a erradicação da pobreza e a drástica redução das desigualdades sociais. As condicionantes da despesa pública passariam a ser o nível de inflação que se tiver assumido como limiar e o relativo equilíbrio das contas externas, ambas sujeitas à vigilância do poder legislativo apoiado por assessoria técnica (o actual conselho de finanças públicas seria extinto).


Uma mudança de paradigma da política económica no seio do capitalismo? Nem pensar! Os centros de comando do capitalismo neoliberal e os centros de difusão da sua ideologia não admitem tal coisa e tudo farão para o impedir. Estaria em causa o poder do capital liderado pela finança e grandes corporações, acompanhados pelos seus acólitos, com destaque para muitos economistas do (errado) pensamento dominante.


O fantasma da inflação é o risco mais invocado, mas estes ideólogos nunca explicam, em concreto, qual será a sua origem. E não explicam porque não podem revelar a sua falta de fundamento: a teoria quantitativa da moeda é uma teoria falsa, embora ensinada como se fosse verdadeira. E, olhando para os factos, não se vê inflação relevante nas economias que têm uma capacidade produtiva razoavelmente organizada, mas longe do pleno emprego, apesar da criação de moeda em larga escala. Após uma década de injecção massiva de liquidez nas economias do grande norte, não houve inflação, muito menos a hiperinflação que alguns analistas garantiam. É que a troca de títulos de dívida por moeda não conduziu a um aumento da procura; afinal, só a despesa pública pode fazer subir a procura, compensando a retracção do sector privado, numa conjuntura de estagnação ou recessão. Aliás, a proibição da política orçamental na UE é a principal causa da ascenção da extrema-direita, no quadro de um regime monetário que é estruturalmente semelhante ao do padrão-ouro dos anos trinta. Parece que há muita gente que, dizendo-se de esquerda, não conhece Karl Polanyi, ou pelo menos não leu os capítulos 19 e 20 de A Grande Transformação.


Também se agita o fantasma de que os bancos centrais possuem agora uma boa parte da dívida pública como se isso fosse um problema. Na realidade, trata-se de uma dívida do Estado a si mesmo uma vez que o banco central é do Estado. Essa é a natureza das coisas fora da UE. No caso desta, trata-se de um clube de Estados que instituiu um banco central absolutamente independente (como se a política monetária fosse uma questão ‘técnica’), algo que uns quantos economistas preferem ignorar nas suas generosas (mas inconsequentes) petições de cancelamento de dívida pública na posse do BCE.

Fora da UE, essa dívida pública na posse dos bancos centrais é uma dívida para ignorar e cancelar. Sendo a entidade legalmente autorizada a criar a moeda-base do sistema financeiro, pela sua natureza (por definição) um banco central não entra em falência. Adicionalmente, é preciso explicar a estes jornalistas e à maioria dos economistas do pensamento dominante que é o próprio banco central que fixa a taxa de juro nos mercados. Por conseguinte, são falsos os perigos que os media nos anunciam para o pós-pandemia.

A verdade é que a OCDE continuará a aconselhar os governos a ter medo da dívida pública quando decidem os apoios às empresas e a todos os que são afectados pelo combate à pandemia. De facto, não foi por distracção que o governo de Portugal ficou muito aquém da despesa prevista no orçamento de 2020; foi porque travou quanto pôde o crescimento da dívida, tal como a maioria dos países da zona euro. E é também por essa razão que os apoios tardam a chegar, apesar de muito propagandeados: múltiplos obstáculos técnico-burocráticos fazem desistir inúmeros candidatos, a que se adicionam requisitos de acesso deliberadamente apertados, tudo isto para conter a despesa na maior tragédia do pós-guerra.

A insistência nesta retórica do risco da dívida excessiva é certamente uma forma de não deixar que ganhe força a alternativa política ao neoliberalismo; é a preservação da hegemonia das suas ideias que está em jogo. Contudo, no caso particular da UE, há algo mais que foi varrido para debaixo do tapete nesta discussão pública do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR). A crise foi aproveitada para, a coberto do pacote financeiro Next Generation EU – de solidariedade e construção de um futuro próspero para todos! –, impor aos países da zona euro um controlo ainda mais apertado dos respectivos orçamentos de forma a eliminar as pequenas margens de manobra que ainda poderiam ser aproveitadas por algum governo de inclinação menos ortodoxa. Até porque não é seguro que Draghi seja bem sucedido nesta tentativa de meter definitivamente a Itália no colete de forças neoliberal.


A criação de impostos europeus (supranacionais, mas sem democracia federal) destinados a pagar o endividamento da UE, acompanhados de um mais apertado escrutínio dos orçamentos dos Estados-membros, é apenas mais um passo para a eliminação do que resta de soberania nacional. O voto dos povos da UE já não conta para o respectivo orçamento. O seu enquadramento quanto aos saldos e à dívida é imposto pela UE, agora acompanhado de reformas ainda mais específicas, e cada vez mais imperativas, decididas pela Comissão muito para além do que está no Tratado de Lisboa. Havendo alguma resistência política, lá estará o BCE para disciplinar o país desviante. Basta-lhe reduzir o volume de compras da dívida desse país e, ao mesmo tempo, proferir uma declaração de desagrado. Isso será o suficiente para os títulos perderem valor e os juros dispararem, pelo que só resta uma submissão à grega e a sujeição a uma punição exemplar.

 

Entretanto, dado que os alemães receiam a acumulação de dívida da periferia no balanço do BCE, está em preparação uma alternativa para o pós-pandemia: suspender gradualmente o actual financiamento aos Estados (indirectamente, através do mercado secundário) pelo financiamento directo, sob condição de austeridade, através do Mecanismo Europeu de Estabilidade. Se tal projecto for concretizado, pode tornar-se uma verdadeira bomba nos mercados financeiros. Ninguém acredita que a Itália se sujeite tranquilamente a tal reconfiguração no financiamento dos Estados-membros, pelo que o tempo pós-pandemia será certamente um tempo de grandes tensões políticas na UE, agravado pela erosão do centrismo e crescimento da extrema-direita por falta de alternativa convincente à esquerda. Dado que anda por aí muita gente que se diz de esquerda com expectativas fantasiosas sobre uma reforma progressista da zona euro, vejo-me na obrigação de dizer com clareza: por falta de “condições objectivas e subjectivas”, Portugal não vai sair do euro, mas dentro do euro estamos condenados à austeridade e à decadência como qualquer periferia no mundo; mais, a democracia da UE, incluindo o pseudo-Parlamento Europeu, é uma farsa.


Como bem sabem os economistas que estudaram os processos de desenvolvimento, não será o dinheiro do PRR e do Portugal 2030 que permitirá ao país sair da estagnação. Desde Maastricht, o dinheiro até hoje recebido permitiu fazer coisas interessantes mas a verdade é que o país continua muitíssimo longe do que lhe foi prometido com a moeda única. No colete de forças da União Económica e Monetária, o declínio será temporariamente mascarado pela construção de novas infraestruturas e melhores equipamentos sociais (com falta de funcionários, porque estes estragam as “contas certas”), mas é um processo imparável. Gunnar Myrdal, uma referência nos estudos do desenvolvimento económico quase banidos dos curricula, explicou com clareza os mecanismos que, num processo de integração, permitem às regiões desenvolvidas sugar as menos desenvolvidas.


Isso aconteceu no nosso país (com boas vias rápidas ligando o interior ao litoral) por falta de uma estratégia de desenvolvimento regional, incluindo a regionalização do poder político, e repete-se hoje com a emigração de jovens qualificados, ou com as nossas start-ups inovadoras, rapidamente deslocalizadas ou absorvidas pelas grandes empresas de países mais desenvolvidos. Este processo decorre sob os nossos olhos e só nos resta o modelo de uma economia que depende dos ciclos do turismo e das bolhas do imobiliário geradas por capitais especulativos. 


O governo não sabe, mas a comunidade académica da Economia Política sabe (ou devia saber) que o desenvolvimento exige um conjunto integrado de políticas públicas de que não dispomos na UE. A começar por uma política orçamental articulada com a política monetária do banco central, com uma política industrial à maneira de Taiwan e Coreia do Sul, com parcerias estratégicas entre Estado e empresas suportada por uma administração pública muito qualificada, e com uma política comercial externa apoiada por uma política cambial inteligente. Só mantendo por muitos anos a consistência destas políticas, além de outras, orientadas por uma visão estratégica, será possível escapar à nossa presente condição de periferia estagnada e, a prazo, irremediavelmente pobre. Se um dia, por iniciativa de outros, a UE se vier a extinguir, ou a reformular sem as pretensões federalistas subjacentes à moeda única, o espaço das políticas públicas que permitem o desenvolvimento alargar-se-ia imenso. Ainda assim, seria apenas a condição necessária.