Uma vez, a Comissão Europeia quis ser aprendiz de feiticeiro e manipular a vida das pessoas em nome de tantas coisas. Era a poupança de energia (argumento energético) - para quê iluminar os escritórios se é possível fazê-lo com a luz solar? Era a produtividade (argumento económico) - para quê forçar o corpo humano a trabalhar se ele pode fazê-lo de forma alegre? Era a felicidade das crianças (argumento escolar) - para quê acordar os miúdos de noite para ir para a escola, se o sol o pode fazer?
Era um afunilamento produtivista do problema. E tudo foi decidido à má fila. Os amanhãs cantavam na economia europeia. As políticas laborais eram conducentes a uma desarticulação cada vez maior entre a vida profissional e a familiar, por isso era importante que, ao menos, o sol brilhasse e a neura diminuísse. Vamos, pois, brincar aos relógios.
Mas a coisa não correu de feição. Ao fim de anos e anos de testes, a Comissão fez uma consulta pública e obteve a maior resposta de sempre. Negativa. E recuou. O Governo português fez uma consulta técnica a uma pessoa (!), o director do Observatório Astronómico de Lisboa, Rui Jorge Agostinho, que elaborou em finais de Agosto um relatório e manteve tudo como estava. Porquê: Porque temos um horário de Inverno e de Verão que "é benéfico para a maioria das pessoas”.
Será? Porquê "para a maioria"? Como se avaliou se é "a maioria"?
O relatório tem o mérito de fazer um balanço histórico das diversas experiências feitas para sincronizar a hora solar com as actividades humanas. E de divulgar, por exemplo, que afinal o argumento ecológico era um embuste. A poupança de energia revelou-se irrelevante: foi de... 0,34%. Ainda bem que o número foi até às centésimas! O argumento da produtividade, já nem se faz contas. Restava o da felicidade das pessoas, o lazer...
Veja-se o que se passou, entretanto, aos ratos de laboratório:
Tudo começou em 1916. E onde? Na Alemanha - claro! - por causa do seu esforço de guerra. É um bom começo, na verdade, que foi depois copiado em vários países, e pela CEE. Em Portugal, as coisas passaram por várias fases:
Primeiro, havia aquela ideia de não mudar a hora solar e não ter Hora de Verão (HdV). Foi o que se passou com Portugal - em 1912-1915, 1922, 1923, 1925, 1930 e 1933. O sol e as pessoas levantavam-se no verão entre as 5 e 6h da manhã e à tarde "perder-se-ia" uma hora, o que - diz Rui Agostinho - prejudicaria "passear, fazer caminhada, corrida, bicicleta, etc., ou atividades de lazer ou culturais porque se perderia esta hora de luz". Segundo. Era uma situação intermédia: aumentar uma hora à hora solar, mas sem mexer na HdV. Foi o que aconteceu entre 1967 a 1975: no outono/inverno, o sol nascia perto das 8h, o que é tido como mau. Por que razão havia de ser mau? Porque era mau para a produção...
"Isto implica que as grandes movimentações em massa, para os trabalhos ou escola, seriam essencialmente realizadas com pouca luz, difusa, no céu. O despertar da população aconteceria com as estrelas ainda no céu, durante 40% do ano."E... qual era o problema? Foi abandonado devido "ao desconforto causado". Como se avaliou esse desconforto? Não se sabe. Eu não me lembro.
Terceiro: Tentou-se então uma versão maluca: mais uma à hora solar, com HdV!! No verão, o sol punha-se às 22h (!) com noite escura lá para a meia-noite. Era o paraíso dos bares! O ambiente optimizado para o sucesso das starups e do empreendedorismo! Aconteceu no final do período Cavaquista, entre 1993 e 1996 (!). Era mesmo mau. Mas os jovens gostavam. Mas a escola ressentia-se. Acabou. Quarto: Decidiu-se então que o melhor era manter a hora solar, mas com HdV. E - mais uma manigância - com ou sem adesão à hora europeia!
"O impacto (psicológico) negativo da transição de saída da Hora de Verão (tardia em outubro) seria diminuído se esta fosse feita no último domingo de setembro"... Concluiu-se então que a melhor solução era hora solar com HdV! "Porém, poderia ser ainda melhor se a transição em Outubro regredisse para Setembro"...Quem é este pessoal de bata branca que cheira demsiado a laboratório?
No relatório, as alterações à saúde das pessoas apenas vêm sintomaticamente em último lugar na análise. E voltam a basear-se nos relatórios de 2007 da Comissão Europeia, em que os serviços da Comissão diziam não haver qualquer problema.
Os únicos problemas eram - apenas - as mudanças abruptas e artificiais do tempo: de um momento para o outro, em vez de acordar às 7h, passa à acordar às 6h e não percebe porquê, mas tem de adaptar-se. Tenta acordar às 7h, que antes eram 8h. Mas, meses passados, de repente, em vez de acordar às 7h, que eram 8h, tem de passar a acordar às novas 7h, que antes eram 6h... Perturbações? São "de curto prazo" e tudo depende do "cronotipo da pessoa" (rico conceito). Claro que só depende do cronotipo dos indígenas... Algumas vezes - admitem - as perturbações vão até às duas semanas. Não é nada. Não há problema!
Em que se baseou o nosso astrónomo para decidir - ele só! - sobre as horas de sono das pessoas? segundo diz, em artigos académicos O seu discurso directo é, porém, muito mais rápido: o nosso corpo precisa de Sol para acordar e começar a produzir. Sem Sol, vai haver mais acidentes no caos nocturno do trânsito... E vai haver mais tempo de lazer.
Tempo de lazer? Só podem estar a brincar com as pessoas. Quem perde 3 a 4 horas no trânsito porque já não pode viver na cidade, quem trabalha para lá das 8 horas diárias por causa de um banco de horas; quem é mal visto por sair à hora fixada por lei porque outros ficam a trabalhar, esses ficarão muito mais feliz com a sua vida porque agora vão poder passear e andar de bicicleta...?
Para quem mal consegue conciliar um horário profissional com o seu tempo de família, para quem como os 1,3 milhões de portugueses que trabalham ao serão, os 530 mil que trabalham de noite, os 939 mil que trabalham mais do que 40 horas semanais (dados INE), para quem se levanta muito para lá da hora do nascer do dia, a milagrosa hora de verão e de inverno tudo virá resolver...?
Não parece. Mas essa não parece ter sido também a preocupação oficial. Se fosse, alguém teria pensado nisso, nessas pessoas e nos seus tempos de lazer quando se mantém em vigor os bancos de horas, a ponto de ter apenas acabado com os individuais, mas de se querer agora criar a figura de uma votação referendária entre os trabalhadores, para obrigar quem não quer.
Afinal, pensou-se em quem quando se olhou para esta questão do... lazer, que parece agora - aos olhos do governo - ser tão importante?
E o que diz o primeiro-ministro:
“Acho que o bom e único critério é o critério da ciência e o que foi expresso até ao momento pela entidade competente, que é o Observatório Astronómico de Lisboa, é o entendimento que em Portugal devemos manter este regime de horário, com uma hora de Verão e uma hora de Inverno”, disse Costa, em entrevista à TVI. “Não vejo razão para que se contrarie a ciência e se faça algo de forma discricionária.”António Costa é assim. Apenas não quer fazer ondas. A nada.
De 'sol a sol' sobreviveram incontáveis gerações de humanoides.
ResponderEliminarAtingido este elevadíssimo estado de desenvolvimento, o que há de problemas!!!!
Vamos lá ver, no meio de tão grande jeremíada acerca da dominação capitalista sobre o tempo das pessoas, acabei por não perceber qual a opinião do João Ramos de Almeida sobre o assunto em questão. Se calhar nem interessa, já que dá para malhar nos do costume, António Costa incluído.
ResponderEliminarFaça-me um favor, saia da casca e defenda uma moção de censura ao Governo do PS. Pode ser que lhe saia Rui Rio na sina. Só para ver se gosta...
De outro modo, não chateie...
O que há de problemas, diz um, a arrastar o catarro ao longo do tempo
ResponderEliminarOutro quer à viva força que os autores de blogs sigam as suas pequeninas agendas umbilicais.
E tem um comportamento final indelicado próprio do verniz elitista estalado
Uma festa.
Com que então "não chateie"? LOL
ResponderEliminarParece que Jaime Santos tem dificuldade em integrar a legítima crítica de JRA.
Talvez daqui a uns anos acabe por dar razão aos críticos como o "camarada" Vítor Constâncio... ;)
http://www.coppolacomment.com/2018/10/vitor-unbound.html?m=1
De que se trata? De uma charla de VC na London School of Economics em que reconhece implícitamente o bem fundado das criticas de tanta gente, economistas sobretudo e da autora do blogpost, a impecável e brilhante Sra Frances Copolla.
Todo o blogpost merece atenta leitura pelo que não farei citações. A informação é rica demais para salientar uma ou outra frase. Leiam! Usem GoogleTranslate se fôr preciso.
S.T.
Caro Jaime Santos,
ResponderEliminarAs coisas não se resumem tão simplesmente a uma moção de censura para cá ou para lá. Estamos a falar de políticas. E pelo discurso, António Costa até poderia abrigar um conjunto de políticas diferentes. A decepão é que tenda a tentar conciliar tudo, pensando que nunca terá de fazer opções de fundo, quando no fundo as faz todos os dias e no sentido oposto ao do seu discurso.
Uma moção de censura não resolveria, pois, este problema. Rui Rio tenderia a fazer uma política muito semelhante a esta, talvez com outras nuances, dependendo dos apoios políticos que tiver. É uma situação difícil em que certa esquerda pense a esquerda com ideias de direita.