quinta-feira, 8 de maio de 2025

Lã, neve, memória, futuro


Horácio, o jovem pastor de Manteigas que em
A Lã e a Neve sonhava com uma vida digna na Covilhã, trocando a serra e o pastoreio pelo trabalho na fábrica, é hoje mais do que uma personagem — é símbolo de uma luta que continua. Quis uma casa para viver com Idalina, uma família, um futuro. Mas viu-se confinado a um casebre. 

Como é possível que, ainda hoje, tantos Horácios continuem à procura da casa a que têm direito? Como é possível que, 80 anos depois, o acesso à habitação continue a ser negado a quem trabalha, a quem sonha, a quem constrói esta terra todos os dias? 


Por acasos da vida, cheguei tarde à leitura de Ferreira de Castro, agora muito bem reeditado pela Cavalo de Ferro. E o que andei a perder. Só há umas semanas li A Lã e a Neve. É o romance de Ferreira de Castro que mais se aproxima do neorrealismo, aprendi isso num livro sobre esta corrente que me foi recomendado por um amigo. E melhor coisa no mundo não há: livros que são amigos, amigos que são livros. 

Enfim, também por acaso, tive de ir à Universidade da Beira Interior, na Covilhã, participar numa conferência sobre interdisciplinaridade, organizada por alunos do mestrado de ciência política, uma semana depois de ter acabado o livro. 

Lá citei uma passagem deste romance fulgurante, o melhor que conheço a retratar, com empatia profunda, o que era empobrecer e envelhecer a trabalhar nos lanifícios durante a guerra e depois, ao fim de décadas, ser despedido sem mais, sem direito a nada mais do que a sopa dos pobres, a esmola e, vá, a um dinheiro do “sindicato” que dava para duas ou três refeições numa semana. 

Um romance que tem lá dentro serra e fábrica, vida e morte, luta de classes e consciência social. Está lá tudo, incluindo a questão da habitação, ponto de encontro de tudo o que é substancial. Há ali uma vontade de “habitar a substância do tempo”, digamos. 

E citei este romance, porque há muito que argumento nas aulas, o que também fiz desta vez: lede romances, romances com sociedade lá dentro, não há nada melhor para cultivar a empatia, para conhecer de dentro para fora e de fora para dentro outras vidas, a variedade de circunstâncias e motivações humanas nestes e noutros tempos e espaços; sereis melhores pessoas, melhores profissionais, melhores cidadãos. 

Quereis saber o que é perder tudo e ter fome na Grande Depressão, por exemplo? Lede As Vinhas da Ira. Ciências sociais e humanas, sem separações. Não há maior alegria profissional do que me dizerem: obrigado, li, etc. Os livros mudam-nos. 

Bom, lá falei de economia política, do Estado social enquanto configuração socialista que deve proteger quem cria tudo o que tem valor, falei de trabalho, do desencontro entre a ciência política e a economia em Portugal. 

Defendi que a economia dominante no nosso país finge que lida com questões económicas politicamente resolvidas e que a ciência política dominante finge que lida com questões políticas economicamente resolvidas. 

O resultado é que, ao contrário do que acontece lá fora, não se estuda, com escala relevante, o capitalismo histórico nacional. Há um défice de economia política e logo de política económica com propósito social. Já estivemos pior, dados os factos brutos que se vão impondo e o esforço intelectual coletivo, mas continua a ser muito insuficiente.

Imagino, porque tive contacto com parte da sua biblioteca, que este tipo de problemas já preocupasse Ferreira de Castro. Gosto de pensar que sim. Seja como for, haja quem se lembre dele, quem se lembre. Há memórias que estão prenhes de futuros.

11 comentários:

  1. Para quem gosta de politica A curva na estrada é muito bom também. Adorei.

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  2. Ferreira de Castro: A LÃ E A NEVE lembrado por Paulo Raimundo num comício da Covilhã
    http://ferreiradecastro.blogspot.com/2025/05/a-la-e-neve-lembrado-por-paulo-raimundo.html

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  3. Ferreira de Castro: A LÃ E A NEVE, de Ferreira de Castro: "a História escreve-se no presente"
    http://ferreiradecastro.blogspot.com/2016/07/a-la-e-neve-de-ferreira-de-castro.html

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  4. Ferreira de Castro: «Bibliofilia e livros russos»: a propósito de «A Lã e a Neve»

    http://ferreiradecastro.blogspot.com/2007/04/l-e-neve-de-chico-da-cuf.html

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  5. Ferreira de Castro: A LÃ E A NEVE no top dos melhores livros de ficção publicados em 2018
    http://ferreiradecastro.blogspot.com/2019/01/a-la-e-neve-no-top-dos-melhores-livros.html

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  6. Terá também de passar por Manteigas, a minha terra.

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