domingo, 21 de fevereiro de 2021

Recursos internacionalistas

Em 1966, realizou-se em Havana a conferência internacional dita tricontinental, reunindo movimentos anticolonialistas e anti-imperialistas de três continentes, juntando referências como Fidel Castro ou Amílcar Cabral. O último podcast Convocar a História de Fernando Rosas debruçou-se sobre este encontro e sobre os seus legados.

Foi uma das versões radicais, das que foi à raiz de tantos problemas, do projecto político mais vasto do Terceiro Mundo, cuja história é contada por Vijay Prashad. Prashad mobilizou neste seu livro memorável e por traduzir a noção nada paradoxal de “nacionalismo internacionalista”: “pátria ou morte, venceremos”, afinal de contas. O internacionalismo não é um cosmopolitismo de nenhures. 

O historiador indiano dirige o Instituto Tricontinental de investigação social. A produção deste centro é pedagógica, com recursos internacionalistas que nos ajudam a ver, em várias línguas, incluindo o português, os contornos do emergente mundo multipolar para lá do imperialismo ocidental, sem esquecer as apostas socialistas em contexto pandémico, por exemplo. 

É preciso ter os pés bem assentes na nossa terra a defender, apoiando todos os que lutam pelas suas, até porque a nossa libertação já foi tão ajudada por vários povos em luta, liderados por intelectuais da estatura de Cabral. Em Portugal, os anti-fascistas e anti-racistas que esquecem esta história, que esquecem o colonialismo e os nacionalismos que se lhe opuseram, estão sempre perdidos, ficam sem chão. E o que dizer de deputados de um partido que ostenta o socialismo no nome e que homenageiam, salvo honrosas excepções, Marcelino da Mata, o militar mais condecorado pela ditadura fascista, num vergonhoso exercício de desmemória na nossa Assembleia da República?

A leitura do artigo 7º, sobre relações internacionais, da Constituição da República Portuguesa (CRP) pode ajudar esta gente. Lá está uma das declinações desta história, sem confusões: da luta contra o colonialismo e o imperialismo ao reconhecimento do direito dos povos à autodeterminação e independência nacionais, se necessário for pela insurreição. Para nós, o problema está no final desse artigo e sobretudo no artigo seguinte, sobre um certo primado do chamado direito europeu, uma declinação da integração furtiva, ainda que com ressalvas democráticas do espírito original da CRP de 1976. 

A história está cheia de curvas apertadas, de becos sem sardinheiras e de recuos súbitos e brutais, mas os povos avançarão, haja esperança, sendo que as únicas coisas que se podem prever cientificamente são mesmo as lutas em várias escalas e tabuleiros e a ruína gerada pelo globalismo neoliberal, um dos nomes novos para o velho e novo imperialismo, para a velha e nova política externa ao serviço do capital financeiro.

2 comentários:

Anónimo disse...

João Rodrigues, esta sua preciosa nota «...mas os povos avançarão, haja esperança, sendo que as únicas coisas que se podem prever cientificamente são mesmo as lutas em várias escalas e tabuleiros e a ruína gerada pelo globalismo neoliberal...», merece uma música de Pete Seeger que tem como título «We shall not be moved» (https://www.youtube.com/watch?v=GN-I2_vLKWI)

JE disse...

Mais uma vez um post que nos convida para vários outros, mostrando que isto de facto anda tudo ligado

Já agora "We shall not be moved" tem origem nas práticas religiosas dos escravos africanos nos Estados Unidos do século XIX. No século XX, foi adotada como hino pelos movimentos sindicais e de direitos civis americanos. Posteriormente, chegou à Espanha, onde desempenhou um papel na resistência ao regime franquista, antes de ser cantada no Chile para defender o projeto socialista de Salvador Allende.

Vários intérpretes a tomaram nas sua mãos. Em princípios dos anos 40 do século passado, um grupo de jovens músicos de "folclore" que se chamava The Almanac Singers, cujos integrantes incluíam Pete Seeger, Lee Hays e Woody Guthrie, gravou una versão sindical de We Shall Not Be Moved num LP intitulado Talkin' Union, acompanhando-se de banjo e guitarra, que popularizou a cancão. Assim a canção chegou a fazer parte de um repertorio de canções folclóricas "politizadas" que eram cantadas nas reuniões e eventos culturais da esquerda urbana nos anos quarenta, até que este tipo de reuniões foram suprimidas pela repressão anticomunista do "macartismo".

O que não impediu que chegasse até aos nossos dias.

Já agora também "...a noção nada paradoxal de “nacionalismo internacionalista”: “pátria ou morte, venceremos”, afinal de contas. O internacionalismo não é um cosmopolitismo de nenhures".

Essa última frase é magnífica