quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020

Rumo e estratégia

Fonte: INE
Ana Catarina Mendes, líder da bancada parlamentar socialista, que estava ontem no Parlamento muito optimista, durante o debate quinzenal com o Governo, disse:

"Os números e os resultados da economia portuguesa desmentem a tese dita e repetida de que tudo está mal". Os dados do INE "revelam uma economia em convergência, resiliente e sustentável.""Portugal começou a crescer mais do que a Europa pela 1ª vez de que aderimos ao euro e o que era parecia improvável tornou-se agora habitual." O ano de "2019 foi já o 3º ano consecutivo de convergência". "Enquanto o crescimento na Europa tem desacelerado, o crescimento em Portugal não só resistiu como também acelerou". "Crescimento sustentado porque apoiado em investimento e exportações". A economia portuguesa "é hoje a campeã do crescimento europeu e os resultados divulgados pelo INE não são um acaso ou um milagre." "É um resultado de um país com rumo e com estratégia."

Depois desta intervenção, retomada pelo primeiro-ministro (lá iremos noutro post), gostava de deixar a imagem acima.

A "taxa de subtilização" - sofisma para designar taxa de desemprego em sentido lato (como antes se designava) - mede a proporção na população activa daqueles que ou estão desempregados; ou, sendo trabalhadores, gostariam de trabalhar mais horas (subemprego); dos inactivos que procuraram emprego, embora estivessem indisponíveis na semana do inquérito ao emprego; ou ainda os inactivos que, embora disponíveis, não procuraram emprego na semana em que se realizou o inquérito.

O que se pode ler no gráfico?

1) Durante o mandato do Governo PSD/CDS, sob os auspícios da troica, a taxa de subutilização atingiu 25% (!) da população activa. Isto é, um quarto da população disponível para trabalhar estava desempregada, parada ou a trabalhar abaixo do necessário. Foram cerca de 1,4 milhões de pessoas!

2) Frise-se: Chegou-se a essa taxa seguindo os preceitos teóricos que consideravam imprescindíveis os esforços de austeridade pública e privada como forma de equilibrar as contas externas. Para tal, foram usados todos os instrumentos legais para se conseguir a chamada desvalorização interna. Isto é, baixar e manter baixos os salários, como forma de dar às empresas aquela margem para ganhar competitividade externa.

3) Além das disposições do Código de Trabalho de 2003, das alterações de 2009 (ainda mais gravosas), entre 2011 e 2014, foi aprovado um ror de medidas tendentes:

a) a uma recessão para aumentar o desemprego em Portugal (só assim, diziam, se obrigava os trabalhadores a aceitar reduções dos salários nominais). E para tal...
b) desprotegeu-se o emprego (tornou-se o desemprego mais fácil e mais barato: as compensações sofreram um corte de 60%!);
c) desprotegeu-se o desemprego (cortou-se na duração e no montante do subsídio de desemprego);
d) desvalorizou-se o trabalho (medidas para reduzir o valor do trabalho suplementar, cortando na sua retribuição - 50% - e impondo o banco de horas, que permitiu o alargamento da sua utilização sem custos adicionais);
e) fixou-se os salários baixos (impedindo-se e manietando-se a negociação colectiva).

Ora, frise-se: a esmagadora maioria dessas disposições continua em vigor, travando a subida do valor do Trabalho e contribuindo para manter o desemprego elevado! Porque essa era - e é - a sua missão.

Mais: que consistência existe na ideia de manter estas medidas e ao mesmo afirmar que se quer definir um quadro de médio-prazo para que os salários ganhem peso no PIB? Alguém está a enganar-se ou alguém está a enganar o resto dos portugueses.

4) Frise-se ainda mais: passados 4 anos do pico observado na taxa de subtutlização (25% em 2013), passados 4 anos sobre o novo mandato político do PS (2015), a taxa de utilização encontra-se ainda em 12,5% da população activa. Ou seja, um valor ainda assim superior ao 1º ano em que se começaram a sentir em Portugal os efeitos da crise internacional de 2007/2008. Ou seja, ainda estamos muito para lá do desejável.

E resta saber se não se retomará um nível de desemprego anterior à crise, quando já se sentiam os efeitos da criação do euro. Em 2008, a taxa de subutilização andava ao redor dos 11%. Algo inaceitável. Muito menos para vãs glórias actuais.

E já nem se está a contar com os emigrantes. Claro que se desconhece se, caso não tivessem emigrado, estariam no desemprego. Provavelmente não estariam. Mas esses postos devem ser contados caso se pretenda atraí-los de novo.

Muito falta, pois, fazer. E se o "rumo e a estratégia" são os de manter as medidas de desvalorização interna pugnadas pela direita - e pela direita europeia - então não é de esperar nada de bom. Veremos quão consistente e sustentável a economia estará, baseada em instrumentos que visam puxar para baixo os salários.

4 comentários:

  1. "A noite em que as vacas são todas pretas."
    Frase atribuída a Hegel...

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  2. Parece-me que foi António Costa que disse que Portugal não era o País das Maravilhas e ele não se chamava Alice. Passe embora a 'boutade', se há coisa que este Governo não pode ser acusado é de meter a cabeça na areia. Sucede que os Governos governam em função do interesse comum, o que pode querer dizer que é preciso ter um pouco de paciência e não colocar o carro à frente dos bois e pedir tudo aqui e agora.

    Os 'soixante-huitards' diziam que se deveria ser realista e exigir o impossível. Também foram muitos deles que depois migraram para o neoliberalismo e fundaram a era individualista actual.

    O País, João Ramos de Almeida, continua de facto por um fio. E não vale a pena culpar o Euro (que tem culpas, claro) se o facto simples é de que teremos sempre que pagar uma dívida que está ainda muito acima dos 100%.

    E quem fala em renegociação, esquece-se, muito convenientemente, que esta ocorre quando os credores deixam de acreditar na capacidade do devedor em pagar a dívida e que ela se faz sempre nas condições deles, leia-se, com muita austeridade à mistura.

    E tente uma renegociação e vai ver como os juros trepam a um ponto em que o País perde simplesmente tudo o que posso ganhar com essa renegociação com o simples aumento do montante necessário para cobrir o serviço da dívida.

    Como ninguém ainda me explicou como é que o País se vai financiar se decidir simplesmente não pagar, porque todos falam em gastar mais, e não menos, eu tenho que concluir que estas exigências são na verdade lamentos...

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  3. « "2019 foi já o 3º ano consecutivo de convergência"»

    A desgraça dos grandes engrandece o nosso poucochinho!

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  4. Caro Jaime,

    Acho que terá de ir mais longe no pensamnento: a dívida gera-se porque o sistema (o sistema cambial, nomeadamente) é deseaquilibrado e gera produção de dívida. É fatal, porque tona a nossa produção se torna não competitividade. Portanto, se está preocupado com a dívida convinha que nos ajudasse - a todos - a pensar como resolver este imbroglio.

    Poderá estar contra a renegociação, mas vai ser um problema viver nestas condições porque a dívida é impagável. E porque o sistema gera mais dívida. Portanto, ou muda o sistema ou não muda o sistema e reduz a dívida. Não tem a ver com o gastar mais: tem a ver com a produção e viver.

    É um pouco mais além de onde estava. E não é de agora : tem décadas de produção de dívida e décadas de problemas adiados.

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