segunda-feira, 31 de agosto de 2015

Lições de um plano mal enjorcado, mas muito plástico

Os quatro anos e tal de aplicação do Memorando são um mar de lições. Quem tenha de ler por atacado as opiniões escritas ao longo deste período, consegue sentir melhor as ideias que estavam por detrás das medidas adoptadas. Nomeadamente em relação ao mercado laboral.

1. Passos Coelho começou em 2011 por querer alterar a Constituição no que toca à justa causa de despedimento. "Causa atendível" em vez de "justa causa". Parece uma ideia vinda algures de um escritório de advogados, não parece? Na altura, pensámos: "Lá está a velha preocupação conservadora, supostamente atenta às dificuldades das empresas em contratar, supostamente para poder empregar". Digo "supostas dificuldades" que - frise-se - não tinham impedido que, nessa altura, Portugal estivesse a viver dos mais altos níveis de desemprego. Ou seja, a lei não impedia o despedimento. Então para quê?

Liberais de pacotilha

«A ministra do CDS vai propor que os Estados possam comprar leite e evitar a falência dos produtores... Uma medida socialista proposta pelo CDS. Afinal, porque é que num mercado livre o CDS não propõe a falência dos produtores de leite?»

Mário Estevam (facebook)

Talvez porque o populismo constitua um dos traços mais marcantes e irrevogáveis do CDS/PP de Paulo Portas, obrigando o partido a meter o liberalismo na gaveta ao primeiro indício de benefício eleitoral. Não custa aliás perceber por que é que os verdadeiros liberais se sentem defraudados com esta gente.

domingo, 30 de agosto de 2015

E não viveram acima das possibilidades...

Há já uns anos atrás, num desses inquéritos de suplemento de economia, desafiaram Manuel Carvalho da Silva a escolher o melhor gestor português e o então líder da CGTP escolheu um trabalhador ou uma trabalhadora a auferir o salário mínimo. Vá lá perceber-se porquê, lembrei-me desta resposta empresarialmente incorrecta a propósito do seminário internacional Finanças Conjugais em Contexto de Crise: Género, Poder e Desigualdades, que decorre amanhã e depois no CES-Lisboa. Estou certo que se irá para lá do em casa onde não há pão, todos ralham e ninguém tem razão. Razões há muitas. E para aparecerem também.

sexta-feira, 28 de agosto de 2015

Mudanças

Enganam-se aqueles que acham que a globalização não é reversível. Já aconteceu antes: comparativamente, o final do século XIX era mais globalizado do que os meados do século XX. Mas também se enganam também aqueles que pensam que a globalização é reversível sem drama. A humanidade retrocedeu moralmente durante grande parte do século XX, e pagou uma vastidão de sofrimento por isso.

Proponho uma reformulação a Rui Tavares: Enganam-se aqueles que acham que a globalização não é reversível. Já aconteceu antes: comparativamente, o final do século XIX era mais globalizado do que os meados do século XX, graças, entre outros factores, aos imperialismos europeus, à conquista e à pilhagem que se traduziram nos “holocaustos vitorianos”. Enganam-se aqueles que pensam que o actual drama é reversível sem desglobalização. A humanidade retrocedeu, mas também avançou, moralmente durante grande parte do século XX, e pagou uma vastidão de sofrimento por isso: pelas rivalidades entre as potências imperialistas, pelas políticas do capital financeiro que culminaram na “Grande Guerra”, pela resiliência da utopia liberal nos anos vinte, culminando na Grande Depressão, pelo triunfo dessa radicalização do imperialismo no próprio continente europeu, o nazi-fascismo; em sentido contrário, pelos avanços dos socialismos, pelos vastos movimentos anti-fascista e anti-colonial, que culminaram no desenlace da Segunda Guerra e do fim dos impérios europeus, num contexto em que os que acreditavam em utopias liberais estavam na defensiva e os que acreditavam no “nacionalismo internacionalista” passaram a estar, até aos anos setenta, na ofensiva, ou não fosse o contexto ainda relativamente desglobalizado…

Liberdade e serviços públicos


Uma grande frase, hoje proferida em Coimbra pelo mandatário nacional do Partido Socialista e «pai» do Serviço Nacional de Saúde. Uma frase que se aplica com igual relevo na defesa da escola pública e dos sistemas públicos de segurança e protecção social.

As palavras são importantes


Segundo o jornal espanhol El Diário, 73% das quase 300 mil pessoas que chegaram à Europa pelo Mediterrâneo nos primeiros oito meses de 2015 vêm da Síria (43%), do Afeganistão (12%), da Eritreia (10%), da Nigéria (5%) e da Somália (3%). Isto é, a maioria dos que chegaram à Europa até Agosto deste ano foge da guerra e da violência, das detenções arbitrárias e da tortura, da perseguição, dos abusos sexuais e da repressão das liberdades cívicas e políticas. Não são imigrantes, são refugiados, como o Alexandre Abreu oportunamente assinalou, em artigo recente no Expresso. São pessoas que fogem da guerra e não da paz, como lembra José Manuel Oliveira Antunes, ex-consultor jurídico do ACNUR e ex-membro da direcção do CPR, em artigo hoje assinado no Público.

Nada disto impede contudo que políticos como José Manuel Durão Barroso, ex-presidente da Comissão Europeia e mordomo da Cimeira das Lages, trate a situação como se estivéssemos a viver tempos normais. Como se o que está em causa fosse pacificamente subsumível no quadro da «problemática» das migrações e das mobilidades no contexto europeu e mediterrânico. Isto é, num quadro analítico que permita ao antigo presidente da Comissão Europeia dizer que «os Governos europeus não estão a ser capazes de dar uma resposta à imigração» (sublinhado nosso), defendendo - perante os contornos dramáticos da situação actual - uma Europa de «portas abertas, mas não escancaradas». E tudo isto sem fazer qualquer referência ao silêncio cúmplice das instituições europeias relativamente ao que se passa na Hungria.

quarta-feira, 26 de agosto de 2015

China ao fundo?


Sinal dos “tempos financeiros” que vivemos, pouca informação económica tem mais relevância mediática do que a evolução das bolsas de valores. Pouco interessa que estas sirvam de pouco - muito pouco, no caso português - no financiamento da economia. Nos últimos dias fomos presenteados com o Armagedão do colapso bolsista chinês e subsequente contágio a outras praças financeiras internacionais. Contudo, poucas são as notícias que dão conta que a bolsa de valores de Xangai viveu uma valorização de 150% no último ano. O pânico mediático em torno do que acontece em Xangai deve ser por isso desvalorizado? Sim, mas não muito. É certo que esta correcção dos preços no mercado de acções chinês não parece mais do que isso. Um ajuste de uma fase extraordinariamente especulativa na bolsa. Ademais, a percentagem de famílias chinesas com poupanças na bolsa é marginal, o que limita impactos na capacidade de consumo destas como um todo, e as empresas, com menos acesso a financiamento via mercado de capitais, terão acesso a um sistema bancário comandado pelo Estado e, portanto, com pouca reactividade ao que acontece na bolsa. Pelo contrário, o mais provável, como a reacção política dos últimos dias mostra, é o acesso ao crédito ficar mais fácil e barato. Ainda assim, estes dias servem para chamar a atenção para três pontos essenciais para se perceber a fragilidade da economia chinesa e, de forma mais lata, da economia internacional pós-2008.

O primeiro diz respeito ao modelo de crescimento chinês desde a crise financeira de 2008. Com o colapso dos seus mercados externos aquando da crise internacional, as autoridades chinesas reagiram de forma a desviar as suas fontes de crescimento do exterior para o interior, estimulando o consumo e reduzindo as taxas de investimento. No entanto, este reajustamento da economia chinesa, formidavelmente bem-sucedido na capacidade de evitar os efeitos da crise, foi feito através da expansão do crédito e da progressiva liberalização financeira. Esta combinação tóxica resultou não tanto na desejável valorização salarial e consequente aumento do consumo, mas sim numa bolha de crédito dirigida aos sectores com maior potencial de valorização, como o sector imobiliário, onde só uma minoria beneficia no curto prazo, e que, entretanto, começou a soçobrar. A toxicidade desta combinação ficou manifestamente visível noutra bolha especulativa, a bolsista. A braços com níveis recorde de dívida, a economia chinesa mostra um padrão já visto noutras paragens.

Esta crise de dívida conduz-nos ao segundo ponto. A economia chinesa, ao contrário do que aconteceu, por exemplo com a bolha imobiliária espanhola, não necessitou de financiamento externo. A fuga de capitais é limitada e sem grande impacto. Por outro lado, o sistema financeiro é sobretudo controlado pelo Estado chinês, o que lhe dá espaço de manobra de intervenção directa sobre os fluxos de crédito, prevenindo assim o congelamento deste, como aconteceu nos EUA ou no Japão aquando das suas crises imobiliárias. Ainda assim, tal não quer dizer que o ajustamento necessário da economia chinesa não seja doloroso. Como bem assinala hoje Martin Wolf no Financial Times, taxas de investimento superiores a 40% do PIB necessitam de um crescimento económico difícil de atingir para tornar tal investimento rentável. O Estado chinês terá de reafectar recursos de modo a esvaziar de forma controlada o mercado imobiliário. Isto implica retirar recursos a elites poderosas e transferi-los para sectores mais produtivos, com salários mais altos, afectando também a distribuição primária de rendimento de forma a favorecer o trabalho e a capacidade de consumo das famílias chinesas. Em 2009, por exemplo, falava-se na construção de um serviço nacional de saúde que, além de contribuir para trabalhadores mais saudáveis, conduzisse à redução da poupança das famílias, que são hoje obrigadas a aforrar para fazer frente a um imprevisto de saúde, e assim, aumentar a proporção do consumo no produto interno bruto. Contudo, os contornos políticos deste reajustamento, à luz do que têm sido as respostas políticas mais recentes, não são os mais optimistas. Aparentemente, a solução, necessariamente de curto-prazo, será mais endividamento dirigido aos mesmos sectores.

O terceiro ponto, provavelmente o mais relevante, diz respeito à reacção generalizada de pânico um pouco por todo o mundo nos mercados bolsistas. As implicações directas da queda da bolsa chinesa no resto do mundo são razoavelmente pequenas numa economia onde os fluxos de capitais e a convertibilidade do yuan ainda são limitados. No entanto, esta reacção exacerbada diz mais do nervosismo que reina nos mercados, eles próprios com uma bolha accionista nas mãos. De facto, depois da crise financeira de 2008, os grandes problemas da economia mundial não foram resolvidos: os desequilíbrios externos mantêm-se, a esfera financeira continua a funcionar, grosso modo, na mesma, e o crescimento económico é anémico. Com os mercados financeiros “inundados” de liquidez e com taxas de juro reais muito baixas, não surpreende que os fluxos financeiros se tenham dirigido para o mercado de acções, cujas valorizações têm, em muito, ultrapassado o expectável numa economia medíocre. Ao dar-se um colapso nestes mercados - em praças financeiras onde os agentes embarcaram numa nova onda de endividamento de forma a alavancar os seus ganhos -, as consequências para o sistema financeiro podem ser devastadoras.

As primeiras vítimas desta nova onda de instabilidade são, como quase sempre, os países da periferia da economia mundial, hoje a braços com o colapso dos preços das matérias-primas e uma fuga de capitais que tem o centro da economia mundial como destino. Para as economias semiperiféricas, como Portugal, os efeitos são uma incógnita. A pressão para a fuga de capitais de uma economia sobreendividada como a nossa deveria conduzir a uma nova subida das taxas de juro, num ciclo já conhecido. Contudo, há um compromisso do BCE para manter a zona euro intacta, materializado nos instrumentos financeiros agora em prática. A sua eficácia será provavelmente posta à prova mais cedo do que tarde.

Memória (X)



«O problema é que o governo está a prometer alienar participações como quem vende os anéis para ir buscar dinheiro. (...) A política de privatizações em Portugal será criminosa, nos próximos anos, se visar apenas vender activos ao desbarato para arranjar dinheiro.»

Pedro Passos Coelho (Fevereiro e Junho de 2010)

«A concessão da exploração do metro do Porto e do serviço da STCP é a pedra no sapato que sobra ao secretário de Estado dos Transportes. (...) Como Sérgio Monteiro tem pressa, livrou-se do incómodo do Porto com uma decisão mirabolante: um ajuste directo feito no prazo de 12 dias (oito dias úteis), a escassas seis semanas das eleições. Um pouco mais de sensatez poderia tê-lo impedido de avançar à pressa num processo que dispensou até a consulta às autarquias, que controlam 40% do capital da empresa do metro; um pouco mais de pudor levá-lo-ia a deixar para o próximo Governo o ónus de tão pesada decisão. Sérgio Monteiro não foi por aí e, para se explicar, recorreu a argumentos dignos do mais profissional compêndio de camuflagem semântica (para evitar palavras mais drásticas).»

Manuel Carvalho, Um ajuste directo, mas mal contado

segunda-feira, 24 de agosto de 2015

Os sucessos e insucessos do governo

É injusto limitarmo-nos aos indicadores macroeconómicos mais comuns para aferirmos os sucessos deste governo.

Pode-se apontar muitas críticas ao actual governo, mas há coisas que devem ser reconhecidas: a coligação tem um plano para o país, tem vindo a pôr esse plano em prática e tem uma máquina de propaganda bem oleada que tudo fará para garantir mais tempo para que esse plano seja posto em prática.

Neste momento, essa máquina de propaganda está apostada em contar uma história: o governo reivindica como sucesso seu a retoma recente do PIB e do emprego, mas enjeita qualquer responsabilidade pela contracção da economia e do emprego ao longo da primeira metade da legislatura.

Contar a história desta maneira requer que se enfatize a trajectória recente, especialmente o crescimento do PIB e do emprego nos últimos cinco ou seis trimestres, em detrimento do desempenho global alcançado durante a legislatura. Pois dá-se o caso – ainda que, sob tanta propaganda, isso nem sempre seja recordado – do PIB trimestral estar ainda cerca de 4% abaixo do que sucedia quando o governo entrou em funções. E dá-se também o caso do volume de emprego ser inferior em cerca de 220.000 postos de trabalho face a Junho de 2011. Aquilo que tantos comentadores e apaniguados louvam como inquestionável sinal de sucesso – “o PIB está a crescer” – não é mais do que uma incompleta recuperação de parte do que foi destruído por este mesmo governo.

sábado, 22 de agosto de 2015

O discurso do medo é a confissão da derrota


No Facebook, alguém resumia assim o estado de alguns países após a saída do euro: “moedas sem valor no mercado internacional, inflação galopante, extrema pobreza, sistema bancário de rastos, corralito e corralón, incapacidade de as empresas se financiarem e consequente desemprego, inexistência de meios para importar produtos de necessidades básicas, etc.” De facto, com desemprego em massa pior que o actual, inflação galopante e dificuldade em importar alimentos, medicamentos, etc., temos a combinação perfeita dos males que convém associar à saída do euro.

Quando os argumentos chegam a este nível, isso tem um significado político: a UE dos “amanhãs que cantam” já não convence, pelo que apenas resta a estratégia do medo para controlar o povo.

Repare-se que este quadro negro da saída do euro é inspirado pela realidade que hoje estamos a viver. Nos países mais frágeis da zona euro, já temos desemprego de massa que, no caso da Grécia, é idêntico ao da Grande Depressão dos anos 30 do século passado. Tudo o que a Grécia já sofreu com a política de austeridade, além de cruel e ineficaz, é muito superior ao que teria de suportar se tivesse saído do euro em 2010. O mesmo se poderia dizer de Portugal.

Evidentemente, os partidários do euro a qualquer preço ignoram que um governo com moeda soberana tem autonomia e recursos para promover o pleno emprego. Ignoram que o Banco Central cria dinheiro “a partir do nada” quando credita a conta do Tesouro para que este possa financiar um programa de criação de empregos socialmente úteis, em colaboração com as autarquias locais e agências de desenvolvimento. Ignoram também que o actual modelo de crescimento da Alemanha, gerador de excedentes e do correspondente crédito externo, é intrinsecamente gerador de tensões à escala internacional – as exportações de uns são as importações de outros – e é absolutamente insustentável no contexto da zona euro. Os países que não se integraram na cadeia de valor da indústria alemã não beneficiam da sua dinâmica e, ao mesmo tempo, têm de competir com os salários da Ásia. Esses países europeus, economicamente frágeis, necessitam da política cambial para travar o assédio dos bancos dos países excedentários que oferecem crédito para as importações. Quem defende a manutenção da Grécia, Espanha ou Portugal dentro do euro não diz como se paga a dívida externa privada que se acumulou desde a entrada no euro, nem como se evita a acumulação de nova dívida. Com a austeridade praticamente suspensa em Portugal, na falta de uma desvalorização que torne as importações relativamente mais caras, o défice externo reapareceu e, para o financiar, a dívida externa aumentou. Como se sai disto permanecendo no euro?

A inflação que decorreria da desvalorização da nova moeda tem sido outro espantalho usado para meter medo. Importa lembrar que um país com controlo dos movimentos de capitais tem margem de manobra para gerir o ritmo de desvalorização da sua moeda. Por outro lado, o impulso dado às exportações leva a uma maior procura da moeda, decorrido aproximadamente um ano, pelo que a taxa de câmbio estabilizará num valor compatível com o equilíbrio comercial do país, o que assegura que as exportações geram as divisas necessárias às importações. Ao contrário do que se costuma dizer, o impacto sobre os preços no consumidor é muito inferior ao da percentagem da desvalorização (40% desvalorização x 30% importações no cabaz de consumo = 12% inflação ao fim de dois anos, com tendência a descer).

Com isto, não pretendo dizer que a saída do euro não tem custos. A saída o euro é uma condição necessária ao desenvolvimento do país, mas não suficiente, e tem custos temporários. Um governo preocupado com a justiça social deve endereça-los às classes mais abastadas e aos cosmopolitas que só pensam em si quando invocam os incómodos do câmbio e os custos agravados (ou mesmo o racionamento) das suas viagens ao estrangeiro. O que pretendo dizer é que não há qualquer teoria económica credenciada, nem qualquer precedente histórico de abandono ou de desmantelamento de uma união monetária que dê suporte empírico ao discurso do medo. Basta de ignorância e manipulação.

(O meu artigo no jornal i)

quinta-feira, 20 de agosto de 2015

Os vira-casacas

Fonte: INE, Contas Nacionais
Um leitor do meu anterior post lembrou que, em defesa da coligação de direita, o seu mandato eleitoral não teria sido completamente inútil porque o consumo público teria sido reduzido.

Não sei por que razão a redução do consumo público pode ser considerado - por si só - como algo bom ou mau. Há muito consumo público. Mas o que se viu com este mandato foi que as famosas "gorduras", os famosos consumos intermédios que o Instituto Sá Carneiro teria estimado em 2010 em mais de mil milhões de euros, eram apenas miragens... ou algo "impossível" de ser cortado - como os outsourcings legais, dos pareceres jurídicos pedidos a escritórios de advogados conhecidos, ou os famosos contratos blindados das PPP. Dezenas e centenas de milhões de euros, pagos, apesar da austeridade.

A austeridade foi, na verdade, outra coisa. E um dia far-se-á por completo a sua História.


Mas neste caso concreto, o consumo público foi efectivamente reduzido de 2010 (os famosos PECs de Sócrates) até 2013. No 4T de 2013, inicia-se uma estabilização do consumo público que, veja-se lá, coincide com uma subida do consumo privado. Recorde-se que essa altura, desde 2012, foi a de diversos chumbos do Tribunal Constitucional, da penosa 7ª avaliação da troika, que viria a julgar o Memorando inicial como "mal desenhado" (porque provocara um excessivo desemprego). Foi a altura da demissão de Vítor Gaspar e da flexibilidade das metas orçamentais e das condições de pagamento dívida pública. Enfim, todo um outro programa, muito diferente do defendido desde o início do Memorando.

Se houve revisionismo troikista, ele começou pelos seus defensores que nunca tiveram a coragem de dizer que estavam errados. Nem assumir a sua responsabilidade pelas vidas estragadas de centenas de milhares de portugueses.

Hoje, apenas gerem os negócios das privatizações. E tentam parecer apenas mais cautelosos do que o PS. Quem os viu e quem os vê. Uns vira-casacas, oportunistas.

quarta-feira, 19 de agosto de 2015

Um mau coração e um médico sem curso

Era uma vez, um paciente que mostrava sinais de estar cada vez mais fraco. Ao longo da sua vida, passara por diversas curas, mas - levado por modas várias - sentia-se incapaz de viver de forma sustentável.

Foi então que apareceu um "médico" que lhe prometeu uma cura rápida.

O seu mal - dizia o "médico" - era que comia e respirava demasiado. A terapia passava por apertar nos gastos porque, assim, o paciente acabaria por viver com menos e, ao fazê-lo, iria habituar-se a viver com pouco, cozinhando em casa, levando a marmita para o emprego, e a gastar menos em comidas e bebidas e festarolas, todas elas compradas fora. Era forçoso - dizia o "médico" - parar com o ciclo infernal do "pára-arranca": o coração enchia com o consumo, para ter de parar abruptamente para suster o desequilíbrio externo. O seu organismo tinha de viver de forma mais pausada e regular, em paz.

O "paciente" aceitou a terapia porque era uma ideia muito bem achada. Passou uma procuração ao "médico" para que vendesse as suas propriedades no estrangeiro. E começou a respirar menos e a comer menos. Quando se sentia a desfalecer, o "médico" telefonava-lhe a dizer que era bom sinal, que o organismo estava a adaptar-se e que tinha de ajustar-se ainda mais. Ele tinha um coração estragado, que era necessário outro coração. Mais dieta, mais exercício. Um novo pulsar. E o paciente respirou ainda menos e ia comendo aqui e ali. Até que começou a sentir-se mesmo mal e teve de ser internado.


Aí, o "médico" aproveitou para fechar-lhe a torneira do soro, sentou-se no peito do doente e apertou-lhe o pescoço, ordenando-lhe que não respirasse nem comesse. Tinha de emagrecer rapidamente para evitar o aperto da gordura. E assim fez durante 2 anos. Ao fim desse tempo e dando muito nas vistas aquela figura branca sobre o doente, teve de largar-lhe o pescoço. E o paciente, aflito, começou a respirar outra vez. Aos pingos, lá foi recebendo alimento intravenoso. Já o "médico", cercado de olhares desconfiados, acossado pela má imagem, passou a dizer que fora sua a ideia de libertar o pescoço do paciente e que, como se via, já estava bem melhor. O "médico" saiu para a rua, esfuziante, a gritar que o paciente ia melhorar em breve, muito rapidamente, que a sua terapia resultara!!

O "médico" ainda anda por aí, mas acabará "detido", por maus tratos ao paciente, alguns deles para sempre. E correm rumores de que parte do valor das vendas das propriedades do paciente foram para um fundo dos amigos banqueiros do "médico", que entretanto fugiram e são perseguidos pela polícia.

domingo, 16 de agosto de 2015

Regresso ao discurso do Pontal... de 2011

Foi há quatro anos e tudo parecia possível ao PSD. Hoje, Passos Coelho tem os mais baixos resultados de sempre e lá teve de arrastar Paulo Portas ao Pontal para dar a cara - também - pela coligação.


Passos sabe que tem de ganhar as eleições. E tem de ganhar por muito mais do que as sondagens lhe dão. Se não, a coligação de direita ficará em minoria no Parlamento e, a repetirem-se as dificuldades históricas de haver uma estratégia conjunta à esquerda, a possibilidade de o CDS - já sem Portas - se entender com o PS é mais que muita. Se a coligação de direita perder as eleições, Passos perde o partido. E quem sabe?, talvez haja quem no PS ache o novo PSD atraente e, juntos, arranjem até um candidato presidencial. As eleições legislativas parecem, pois, servir para escolher quem será o parceiro do PS no próximo Governo. Caso parte da História se repita, a História tenderá a repetir-se forçosamente. Sempre numa lógica de curto prazo.

Na campanha, o medo será o grande argumento político da coligação de direita. Mas até pode ser convincente. O medo é uma emoção básica.

Isso e repetir o pouco que a coligação de direita conseguiu - o controlo do défice orçamental (agitando a humilhação da Grécia - mais medo!), o acesso aos mercados (com o BCE por detrás e rezando para nada aconteça aos mercados - ainda o medo!) e a subida recente do emprego. E nesta última parte, a subida do emprego será usada, mesmo que tenha a ver com tudo o que a coligação de direita sempre combateu: com o aumento do consumo privado, a descida da poupança, o aumento dos subsídios públicos para "pagar" empregos (incluindo no Estado), o relançamento dos "malditos" sectores não transaccionáveis, o aumento do Salário Mínimo Nacional, a incapacidade de cortar despesa pública e a subida tendencial do défice externo.

O PSD sabe o que fez e o que não fez. Não mudou o país como queria; apenas o asfixiou. Não fez as reformas estruturais que prometeu. Nem no Estado, nem no sector privado. Baixou os salários, cortou rendimento social, atabafou a Saúde e a Educação, deu mais recursos às empresas, deu-lhes mais benefícios fiscais, tudo isso porque isso fazia parte do ideário e dos negócios. Apenas melhorou o défice externo, tal como melhoraria se matasse 12% da população, que assim deixariam de comer e consumir. Na verdade, o défice externo melhorou com a maior emigração de sempre.

Aliás, quando o Governo falhou, quando Vítor Gaspar foi "despedido" em Julho de 2013, quando o Governo mudou de política sem o anunciar, quando o PSD adoptou a política do PS, a economia começou a recuperar. A tempo das eleições.

Ouvir Passos Coelho com quatro anos de delay é a prova do fracasso e do descaramento actual. (Minuto 3:00)

sexta-feira, 14 de agosto de 2015

Imperialismos...

A invisibilidade do imperialismo hoje em dia não é sintoma do seu desaparecimento, mas sim do seu poder.

 Utsa Patnaik e Prabhat Patnaik, Monthly Review.

Qual é o último reduto do europeísmo? Para lá da invenção de uma tradição europeísta, é a paz capitalista, a ideia liberal, implicitamente aceite por certa esquerda, da paz pelo comércio, pelo aumento das chamadas interdependências económicas e, logo, políticas. É também preciso tomar este reduto de assalto, lançando contra ele a realidade do desenvolvimento desigual, do imperialismo na, e através da, UE, e dos conflitos, internos e externos, de que está prenhe a sua actual configuração, tanto mais intensos, quanto mais tempo esta formação pós-democrática e pós-social sobreviva. Note-se ainda que o imperialismo através da UE está dependente da potência imperial por excelência, os EUA, sendo que esta potência, cujo declínio é sobrestimado, dá rédea relativamente solta ao imperialismo no seio da UE.

A analogia sempre grosseira, mas talvez melhor do que muitas que circulam por aí, é com o destino da chamada primeira globalização, entre o final do século XIX e o início do século XX, no quadro da qual, nem de propósito, floresceu a melhor análise da economia política do imperialismo, tradição de que temos boas continuações, como é o caso do número de Julho-Agosto da Monthly Review. Embora nenhum dos artigos seja explicitamente sobre a UE, a análise de Utsa Patnaik e Prabhat Patnaik é útil para esta área, já que enfatiza uma das dimensões do imperialismo na época da finança que melhor a caracteriza: a imposição de uma economia sem pressão salarial, agora em particular nas periferias, como forma de manter o valor da moeda, o que muito beneficia as elites do centro e um certo capital financeiro que opera nas periferias europeias.

Entretanto, e só para continuar o debate durante as férias, repito o que escrevi no Le Monde diplomatique – edição portuguesa de Julho de 2013:

No contexto europeu, é preciso reconhecer que a «Europa», ou seja, a integração europeia, em especial na sua decisiva e antidemocrática declinação económico-monetária, não é hoje factor de paz, mas sim factor do conflito resultante da humilhação nacional e da demolição da protecção social, criada nacionalmente e associada a fases de intensificação da democracia. Os direitos democráticos de matriz socio-laboral, em particular o pleno emprego com direitos, foram o grande factor de paz, conjuntamente com a estabilização territorial propiciada pela Guerra Fria. Estes direitos foram até compatíveis com fases menos intensas da integração europeia, ainda que o projecto de contenção do socialismo estivesse desde o início na sua matriz institucional e que também nisso ela tenha sido espectacularmente bem-sucedida nos anos de bifurcação das décadas de setenta e oitenta. Desde a década de oitenta, a integração europeia é claramente o principal factor de intensificação de uma globalização para a qual deu e dá um contributo decisivo, através da construção do «mercado único», das negociações na Organização Mundial do Comércio ou do euro.

terça-feira, 11 de agosto de 2015

Revelador


Um ano depois do colapso do Banco Espírito Santo (BES) e do grupo do mesmo nome, que por sua vez se seguiu a uma crise financeira sem precedentes, com os Estados a serem chamados a injectar milhares de milhões de euros em situações de falências, más gestões e fraudes bancárias, dir-se-ia que era má altura para partidos em campanha eleitoral, sobretudo em países com crises sem fim à vista, recuperarem propostas de privatização, mesmo que parcial, do sistema de Segurança Social.

Sandra Monteiro, Aprender com a Segurança Social.

Alguns actores da Guerra Fria, como a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), sobreviveram à queda do Muro inventando outros monstros a destruir, noutros continentes. As instituições europeias redefiniram também o seu adversário. A paz e a estabilidade com que elas se deleitam exigem doravante, a seus olhos, a neutralização política das populações e a destruição dos instrumentos de soberania nacional de que estas ainda dispõem. É a integração a toque de caixa, o enterro das questões democráticas nos tratados, o projecto federal. O empreendimento não é de agora, mas o caso grego ilustra o grau de brutalidade com que ele hoje é levado a cabo.

Serge Halimi, A Europa que não queremos mais.

Excelente número de Agosto do Le Monde diplomatique - edição portuguesa: Yanis Varoufakis confirma a natureza da integração europeia realmente existente em primeira mão, François Denord e outros explicam por que é que o ordoliberalismo alemão é uma prisão para a Europa e Álvaro Garrido expõe alguns dos mitos da economia do mar alardeada pela sabedoria convencional de um país pequeno. Isto para já não falar de um dossiê sobre o transporte público ameaçado em Portugal ou de...

segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Para a colecção: "Isto está mesmo a resultar..."

"O FMI será óptimo para fazermos o que temos de fazer com rapidez e eficiência, garantindo que estaremos a sair do buraco daqui a, digamos, um ano." (Helena Garrido, Jornal de Negócios, 21/9/2010). "O melhor que poderia acontecer a Portugal era um plano à FMI imposto pela União. Em vez desta morte lenta, teríamos uma violenta, boa e rápida recessão. Para voltarmos de novo a crescer com saúde. (...) E sairemos dela menos saloios, menos deslumbrados com palácios inúteis a que chamaram investimento público." (idem, 22/9/2010). "Isto não é o princípio de um pesadelo, é o fim de um sonho. Sem pradarias nem trevas, apenas os pés no chão. O que fazer? (...) Mãos à obra. Eles não fizeram o seu trabalho. Façamos nós o nosso. Restamo-nos. Bastemo-nos." (Pedro Santos Guerreiro, Jornal de Negócios, 30/9/2010).
* Entre o 2º trimestre de 2011 e o 2º trimestre de 2015, Portugal perdeu 194 mil postos de trabalho. E isso apesar de, a partir de 2011, as regras comunitárias considerarem os estágios de desempregados (com uma empregabilidade muito baixa e de alta rotatividade) como empregos. Assim, a taxa de desemprego desceu de 12,1% para 11,9%. Mas ainda assim o número de pessoas que podem ser consideradas como estando numa situação de desemprego efectivo em sentido lato (incluindo os inactivos e o subemprego crónico) subiu de 1,041 milhões para 1,128 milhões de pessoas. Já esteve pior, mas a taxa de desemprego em sentido lato ainda assim subiu de 17,8% para 19,8%. Sem sinais de melhorias, a população activa está em queda – de 5448 mil pessoas para 5201 mil pessoas, prenunciando uma forte emigração. E ela aí está: a população total desceu cerca de 200 mil pessoas nesse período.

* Os salários perderam 4,5 pontos percentuais no conjunto do PIB (de 47,2 para 42,7%), enquanto os excedentes brutos de exploração das empresas ganharam 3 pontos percentuais (ao passar de 41,2% para 44,2%). Em termos nominais, as remunerações desceram 2,98 mil milhões de euros, mais do que a queda do PIB segundo a óptica do rendimento (2,2 mil milhões de euros).

* A par disso, a contribuição da tributação sobre salários e pensões (o IRS é pago quase na totalidade por salários e pensões...) subiu de 57% para 72% do total das receitas dos impostos sobre o rendimento e de 21% para 34% das receitas fiscais totais do Estado.

sábado, 8 de agosto de 2015

A retoma com pés de barro


A questão não é apenas a fragilidade da retoma, como também a sua insustentabilidade intrínseca.

A batalha da propaganda em torno dos indicadores económicos está no auge e no seu centro está a questão do emprego. Isso deve-se em parte à importância central que este tem para a vida das pessoas, mas também à inconsistência entre a evolução da taxa de desemprego e a dinâmica de criação de emprego. Num contexto de emigração substancial, de não contabilização dos desempregados integrados em programas de emprego ou formação e de aumento do número de inactivos desencorajados, torna-se possível que haja simultaneamente menos 26 mil desempregados e menos 210 mil pessoas a trabalhar do que quando este governo entrou em funções. Daí que dois indicadores – taxa de desemprego e volume de emprego – apoiem narrativas diametralmente opostas em relação ao sucesso da estratégia do memorando e ao efeito das políticas deste governo.

O contraste estes dois indicadores não é caso único, porém. Por cada argumento aduzido para apoiar a ideia que o pior já passou e que Portugal tem perante si reais perspectivas de desenvolvimento (como o crescimento do PIB nos últimos trimestres), encontramos outros em sentido contrário (como o aumento dos níveis de pobreza, do número de empresas insolventes ou do crédito malparado). A narrativa da bonança após a tormenta fica naturalmente posta em causa quando encontramos tantos indicadores económicos e sociais que não só não estão em retoma, como se encontram em deterioração.

O problema fundamental, porém, não é sequer a verosimilhança da retoma: quando o PIB contrai tanto como sucedeu em resultado da austeridade em Portugal (-8.5% a preços correntes entre os quartos trimestres de 2010 e 2012, segundo o Eurostat), é sempre de esperar que a atenuação da austeridade permita alguma recuperação. Mais do que isso, o problema de fundo é a insustentabilidade intrínseca mesmo desta débil retoma, que imediatamente se fez acompanhar pela deterioração dos saldos público (-5.1% do PIB trimestral no primeiro trimestre de 2015) e externo (regresso à situação deficitária nos primeiros meses deste ano). Trata-se de um dos trilemas da economia portuguesa – para usar a expressão do meu amigo e colega Ricardo Paes Mamede – em todo o seu esplendor: a impossibilidade de conciliar crescimento económico, redução da dívida externa e redução da dívida pública nas condições actuais da economia portuguesa.

Ou, pelo menos, a impossibilidade de fazê-lo no contexto da moeda única e sem reestruturar a dívida pública.

(publicado hoje no caderno de Economia de Expresso)

sexta-feira, 7 de agosto de 2015

Golpe de Estado nas pensões?



Os últimos dias foram marcados por um acalorado debate nos media sobre a proposta da coligação Portugal à Frente (PaF) quanto a um “plafonamento” das pensões: “a partir desse limite [deve] garantir a liberdade de escolha entre o sistema público e sistemas mutualistas e privados.” “Esta reforma deveria ser objecto de um consenso alargado” (p. 37).

Como seria de esperar em vésperas de campanha eleitoral, a posição do PS sobre esta reforma foi muito crítica.

Tivemos direito a ouvir a acusação de que a PaF defende a privatização das pensões, retirando receitas ao sistema para estimular o mercado dos fundos privados. Diga-se desde já que a reforma de 2007, de que o PS tanto se orgulha, foi muito elogiada pelas instituições internacionais porque, além de introduzir uma fórmula de cálculo que reduz substancialmente o nível de vida da população idosa, introduziu a capitalização pública e promoveu a privada.

Por conseguinte, é preciso lembrar que foi num governo do PS que o contrato social de solidariedade entre gerações – quem trabalha desconta para quem não pode trabalhar – recebeu a primeira marca de forte abertura à privatização. Hoje sabemos que essa tão louvada reforma não conferiu maior sustentabilidade ao sistema de pensões. Desde então, o PS absorveu a propaganda do envelhecimento demográfico para justificar a reforma, até porque o seu europeísmo o obrigava a ignorar a verdadeira ameaça ao sistema, o crescimento anémico da economia com desemprego crescente, fruto da nossa participação na zona euro.

Pois bem, no seu programa eleitoral, o PS dá continuidade à propaganda do “envelhecimento demográfico” (p. 50-51) com uma extensa lista de medidas que, sendo eventualmente necessárias, são manifestamente insuficientes e desviam a atenção da causa em que é necessário mexer em profundidade, a impossibilidade de uma política económica geradora de emprego. Na campanha eleitoral que se aproxima, desviar a atenção do essencial é uma manobra crucial para o PS porque, se falhar nessa manobra tática, deixará à vista o quanto de estrutural têm de comum os programas dos partidos europeístas.

Porque será que a mais danosa proposta da PaF sobre o sistema de pensões, “A criação de uma “Caderneta de Aforro para a Reforma”, que reflita todos os movimentos registados na Conta Individual do beneficiário”, na mesma p. 37 em que se refere o “plafonamento”, foi até agora silenciada? Até hoje, nenhum porta-voz do PS se indignou contra esta proposta de reforma estrutural do sistema de pensões que, de facto, representa o fim do modelo de solidariedade entre gerações que sustenta a democracia portuguesa. Repare-se, a coligação PaF propõe o desmantelamento do sistema público de repartição solidária, e a sua substituição por um sistema individualista (cada um com a sua Conta Individual).

E o PS não tem nada a dizer? Muito estranho este silêncio ensurdecedor, a contrastar com a indignação, alto e bom som, contra o “plafonamento”. Repare-se que este é apenas um detalhe no conjunto de uma “reforma estrutural” de matriz neoliberal: a introdução de um sistema de “contas individuais” já adoptado em alguns países sob pressão das instituições internacionais, um sistema que privatiza o risco de perda de rendimento na velhice (ver o livro de Mitchell Orenstein, “Privatizing Pensions”). Neste esquema, os ajustamentos são sempre feitos do lado das pensões.

Após as eleições de Outubro, num contexto de maioria relativa e fortíssima pressão da UE para um acordo à direita, este é certamente um dos assuntos em que será exigido consenso. O programa da PaF já refere a necessidade do consenso. O actual silêncio do PS é sintoma de abertura. Sem discussão pública, em estado de necessidade, se nada fizermos o que nos espera é um golpe de Estado nas pensões.

(O meu artigo no jornal i)

quinta-feira, 6 de agosto de 2015

Desemprego: a imprensa está a ser invadida por «extremistas sociais»


Há cerca de três meses, João Miguel Tavares e Fátima Bonifácio indignavam-se com as conclusões de um estudo, promovido pelo Observatório sobre Crises e Alternativas (OCA), em que se procurava confrontar os números oficiais com estimativas mais realistas sobre a dimensão do desemprego em Portugal (considerando, para lá dos valores oficiais, os desempregados ocupados em estágios e em acções de formação, os inactivos desencorajados, ou os impactos da emigração e o subemprego). Na altura, Fátima Bonifácio e João Miguel Tavares contestaram fundamentalmente a «cientificidade» desse estudo, tomando-o como um sinal da «transformação da Universidade num local de catequização ideológica», chegando mesmo JMT a designar o CES (Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, de que faz parte o OCA) de «Clube dos Extremistas Sociais».

Nesse mesmo mês, em artigo de opinião do Público («Três ou quatro coisas que é preciso saber acerca do desemprego») os autores do estudo procuraram expor os fundamentos do exercício de estimativa do «desemprego real» e explicitar os conceitos utilizados nos cálculos (a maioria dos quais estabelecidos pelo próprio INE). Ainda em Abril, e porventura também movido pela perplexidade que os dados oficiais suscitam, o Expresso questionava-se sobre qual seria «a verdadeira taxa de desemprego», incluindo nessa sua edição uma infografia com «os vários 'tipos' de desempregados». Refira-se, aliás, que o próprio FMI já tinha anteriormente colocado dúvidas sobre a capacidade de os critérios oficiais darem conta da verdadeira dimensão do desemprego, chegando a publicar, num dos seus relatórios, uma famosa caixa de texto (na qual se faz referência explícita aos «desencorajados», ao «trabalho involuntário de curto prazo» e aos «fluxos de emigração», como factores que deviam ser tidos em conta no apuramento e análise do desemprego em Portugal).

Com a divulgação da Taxa de Desemprego relativa ao primeiro semestre de 2015, que aponta para uma redução dos 13,7% registados no final do primeiro trimestre para 11,9% em Junho, multiplicaram-se as dúvidas sobre os números oficiais do desemprego e os critérios subjacentes ao seu apuramento estatístico. O Jornal de Negócios, por exemplo, refere-se a um aumento de «126 mil desempregados 'ocultos'» face a 2011; o Dinheiro Vivo destaca o «emprego apoiado e o trabalho por turnos» como dois dos factores em que assenta a criação de emprego; o Jornal de Notícias sublinha o aumento da procura de «segundos empregos»; o Diário de Notícias assinala que «509 mil desempregados não entram nas contas oficiais»; e, para citar mais um exemplo, o Diário Económico lembra que cerca de «156 mil estágios 'ajudam' à queda do desemprego». Ou seja, os «extremistas sociais» de que falava João Miguel Tavares parecem estar a nascer como cogumelos e a invadir, a pouco e pouco, a comunicação social.

quarta-feira, 5 de agosto de 2015

Leituras


«Temos sido incapazes e incompetentes para influenciar positivamente as fontes da atual vaga migratória, das guerras na Síria, Iraque, Líbia, Somália e Afeganistão, às perseguições na Eritreia e Etiópia. Passámos de fervorosos intervencionistas humanitários nos anos 1990 para uns abstencionistas identitários sem vontade, coordenação ou humildade perante erros de missões recentes. Não precisamos de "exportar democracia" à lei da bala, mas de lutar contra a bolha em que nos enfiámos, contra a Europa fortaleza e moralista que vê tudo arder à sua volta mas que só acorda quando o drama chega ao seu quintal. (...) Preferimos muros e arame farpado (...). Preferimos gastar milhões a patrulhar roteiros de quem foge à morte, a partilhar entre Estados membros uma integração excecional, chamando-lhes "praga", atiçando os cães e engrossando o arame.»

Bernardo Pires de Lima, Batemos no fundo

«O discurso do aumento da natalidade tem uma componente racista. A Europa quer que nasçam nos seus países crianças europeias. É a explicação simples de todos os políticos europeus discutirem obsessivamente o problema da natalidade e “as políticas de natalidade” – nomeadamente quando falam do futuro da segurança social – e nunca encararem o problema que resolveria a questão da natalidade e do futuro da segurança social: dar refúgio aos milhares de crianças que todos os dias procuram a Europa em busca de uma vida melhor, e, naturalmente, aos seus pais. (...) Perante uma tragédia humanitária como a que se vive à sua porta, a Europa constrói muros, ergue vedações, manda as tropas vigiarem e, regra geral, mostra muito pouca empatia ou compaixão com as vidas que se perdem pelo caminho.»

Ana Sá Lopes, Os muros da vergonha europeia e ocidental

«Se a crise grega já não o tivesse provado, tal como as aventuras bélicas de franceses e ingleses na Líbia e na Síria (que destruíram regimes que eram um tampão para a Europa), toda esta vergonhosa situação mostra a falência do projecto da União Europeia, hoje apenas amarrado por regras financeiras. A Europa do Iluminismo apagou as luzes e esconde-se com vergonha. A Europa já não é uma fortaleza voadora nem uma fortaleza democrática. É um B52 sem destino. Não há uma política conjunta europeia para este problema. Há só um "salve-se quem puder!". A Europa abdicou de ser a Europa que desejaríamos.»

Fernando Sobral, A Grande Muralha da Europa

terça-feira, 4 de agosto de 2015

Exportar propaganda rasca não é fácil

«Bruno Maçães (BM): Mais uma prova de como os países em crise da zona euro estão a deixar os seus problemas para trás. Os riscos estão a tornar-se irrelevantes.
Philippe Legrain (PhL): Sim, a economia portuguesa encolheu 7,5% em sete anos. É a isso que chamas deixar os problemas para trás?
BM: Philippe, farias melhor em reconhecer que as tuas previsões estavam erradas. Portugal está pela primeira vez, nos últimos 40 anos, a crescer sem endividamento.
PhL: Portugal está num buraco terrível. Crescimento débil, uma dívida esmagadora, desemprego muito elevado, emigração em massa. Foi ultrapassado pela Polónia e outros países semelhantes.
BM: Estás enganado. A ideologia cega-te perante os factos. Eu acredito que a maior parte das pessoas prefere prestar atenção aos factos.
PhL: Eu dei-te precisamente os factos. Ou pões em causa os dados do PIB português?
BM: Como eu disse antes, o debate torna-se impossível se as pessoas ficam zangadas quando se lhes demonstra que estão enganadas.
PhL: Adoro isto. Não me apresentas um único facto. Estou-me a rir com a tua falta de argumentos :-))»

Depois de tentar convencer o Wall Street Journal de que o desemprego em Portugal se situa hoje «em níveis idênticos aos registados antes do resgate» (sic), o secretário de Estado dos Assuntos Europeus, Bruno Maçães, socorreu-se de uma reportagem do mesmo WSJ para afiançar que os países da zona euro estão a ultrapassar os seus problemas. O azar desta vez foi cruzar-se, também no twitter, com Philippe Legrain (economista e antigo consultor de Durão Barroso na Comissão Europeia).

Para efeitos de consumo interno, a propaganda rasca do governo em torno do «sucesso do ajustamento», da «viragem da economia» e da «redução do desemprego», entre outras gloriosas conquistas, ainda vai passando, com a prestimosa ajuda da generalidade da comunicação social. Exportar essa «narrativa» é que é mais complicado.

segunda-feira, 3 de agosto de 2015

DG


Mas será que a partir das tensões que existem é possível construir a verdadeira União Política que poderia transformar o euro noutra coisa? Entre as poucas coisas que parecem claras, esta é uma delas: uma tal transformação depende de um consenso, de uma quase unanimidade que não pode existir precisamente porque as tensões que o euro alimenta inviabilizam os consensos que seriam necessários para resolver as tensões do próprio euro. A cada acrescento que é feito ao edifício, alargam-se as rachas nas paredes.
Compreendemos também facilmente que o edifício não é transformável por uma acumulação de mudanças políticas país a país quando cada mudança enfrenta a parede e se transforma em derrota que prejudica a emergência de alternativas noutros países.

 A única mudança possível, a que de facto está na forja, é a apropriação do pouco que resta de soberania dos estados membros (…) 
Este euro é insustentável, ou temporariamente sustentável, mas num quadro disciplinar incompatível com a democracia.

Excerto do artigo de José Castro Caldas - Há mais euro depois da Grécia? - no Público de hoje. Aproveito para relembrar a sua reflexão sobre a lógica hayekiana desta integração assimétrica, de resto reconhecida por alguns dos seus apoiantes.

domingo, 2 de agosto de 2015

Libertações


Estes tempos DG (Depois de Grécia) têm obrigado a esquerda de matriz europeísta, nomeadamente os partidos filiados no partido da esquerda europeia, a rever na prática as suas orientações estratégicas, por exemplo, aquando das votações do “acordo” imposto à Grécia em alguns parlamentos nacionais.

O presidente do tal partido europeu, Pierre Laurent, dirigente máximo do PCF, ainda ensaiou uma defesa do “acordo”, indicando como o europeísmo pode talvez ser o produto de demasiado tempo passado na fétida bolha de Bruxelas e também do oportunismo alimentado pelo injusto sistema eleitoral francês a duas voltas. O contraste com o verdadeiro líder da Frente de Esquerda, que integra o PCF e o Partie de Gauche, o ex-socialista Jean-Luc Mélenchon, não podia ter sido maior. Entretanto, o PCF esteve à altura das circunstâncias, votando contra a imposição de Merkel e do seu parceiro júnior Hollande na Assembleia Nacional e, no fundo, divergindo da avaliação de Laurent.

No Bundestag, o partido da esquerda alemão (Die Linke) também votou contra. Dois dos seus membros escreveram entretanto um artigo, que a Jacobin traduziu, sobre o significado de tal rejeição, apelando a que esta seja o início de uma reorientação estratégica que rompa com o fetiche do Euro. O antigo Ministro das Finanças Oskar Lafontaine, dissidente da social-democracia esvaziada pelo ordoliberalismo e uma das referências do Die Linke, tem defendido o desmantelamento do Euro como a melhor aposta estratégica neste contexto e volta a fazê-lo no prefácio deste livro prestes a sair.

Nem de propósito, Stefano Fassina, um economista e dissidente recente do partido democrático italiano, esse símbolo maior do desaparecimento, esperemos que temporário, da esquerda no país, apelou à formação “de uma aliança alargada de frentes de libertação nacionais”, a começar nas periferias do sul da Europa, no melhor espírito unitário e anti-imperial do tal “nacionalismo internacionalista” de que temos falado.

Assinale-se ainda que este movimento de reorientação, ainda demasiado precoce nestes partidos integrantes do partido da esquerda europeia, parece ter origem em duas fontes: as alas esquerdas, comunistas, de partidos pós-comunistas e as dissidências socialistas dos partidos social-democratas colonizados. Talvez não seja por acaso: comunistas e socialistas de esquerda, em muitos países distantes, entre os anos cinquenta e oitenta, compreenderam bem a natureza desta integração capitalista supranacional. Nunca se regressa ao mesmo lugar, claro, mas é possível lutar de forma consequente contra o neoliberalismo e contra o neofascismo que se insinua nas crises geradas por aquele. Nós por cá até que nem andamos, antes pelo contrário, atrasados nesta história.