sexta-feira, 31 de julho de 2015

É o euro, estúpido!




Os gráficos falam de uma realidade gritante. O capitalismo dos EUA enfrentou a crise de 2007-8 de uma forma totalmente diferente da UE. Esta, passado o arremedo de keynesianismo de 2009 com despesa pública acrescida, lançou-se no resgate aos bancos através da reciclagem do endividamento privado em público, via Memorandos de "ajuda" às periferias. Entretanto, a Finlândia está metida num sarilho porque não tem instrumentos de política económica para lidar com a sua presente crise. Só lhe resta o suicídio da austeridade, de que aliás gosta. Pelo contrário, a Suécia neoliberal, fora do euro, saiu da crise sem dificuldades.

A razão desta diferença entre os resultados dos EUA e da Zona Euro não é um mistério. Embora a despesa pública se tenha reduzido nos Estado Unidos, não houve qualquer viragem para a austeridade como ocorreu na Zona Euro e no Reino Unido. Por conseguinte, o crescimento e o emprego dos EUA ultrapassaram largamente o crescimento da Europa. Evidentemente, podia ter sido ainda melhor se os EUA tivessem adoptado um estímulo orçamental maior.

Pote à frente


Ficam de facto avisados com o programa da coligação das direitas: paf é, na realidade, o acrónimo de pote à frente. Através de técnicas como o plafonamento, trata-se de aprofundar o garrote financeiro da segurança social pública, promovendo a sua privatização, ou seja, a insegurança social, sendo que esta última está dependente das mesmas variáveis económicas da primeira, mas é mais opaca, iníqua e potencialmente lucrativa para a malta da finança: economia política das pensões, de facto. Trata-se também de expandir decididamente uma espécie de PPP na esfera da provisão social. Trata-se sempre de usar as políticas públicas para abrir as portas a um certo capital na área dos bens não-transaccionáveis.

O que dá força a este programa? Num país cada vez mais periférico, são obviamente os constrangimentos externos, nomeadamente a austeridade em nome da integração europeia realmente existente. A esfera social torna-se um campo para todos experimentalismos regressivos. A retórica do chamado “investimento social” aí está nessa escala também, disfarçando mal o desemprego de massas e o ataque à contratação colectiva que enfraquecem o Estado social de pendor universal.

E as alternativas? Se só existisse o PS, bem que poderíamos dizer que Thatcher, a da TINA (there is no alternative, não há alternativa), venceu. Da agenda para mais uma década perdida até ao uso da segurança social como variável de ajustamento, passando pelo pensamento mágico europeu, estamos conversados.

Mas não há diferenças? Até que há, embora não sejam sistemicamente relevantes. O PS faz de forma furtiva e mais lenta, com alguma relutância e resistência em muitos dos seus sectores, o que as direitas fazem de forma aberta e desabrida: toda a história da segurança social no novo milénio aí está para o demonstrar. Diferenças de ritmo, mas não de trajectória regressiva. País periférico sob a alçada do euro-imperialismo.

Felizmente, existem alternativas político-eleitorais que enfrentam os tais constrangimentos. Ficam avisados.

quinta-feira, 30 de julho de 2015

Avisados


«Na página 35 do programa da coligação PSD-CDS consta a proposta de privatização da Segurança Social. Depois de 4 anos a privatizar tudo o que mexe, depois de 4 anos a degradar serviços públicos e a criar (pela primeira vez) défices no sistema contributivo da Segurança Social, a coligação avisa que, na próxima legislatura, será mesmo para avançar, rápido e em força, para a privatização da Saúde, da Educação e, sobretudo - através do chamado plafonamento das pensões - para a privatização da segurança social. Os portugueses ficam avisados.»

João Galamba (facebook)

«Injustamente criticada por não reconhecer a bondade das políticas económicas de inspiração keynesiana, a coligação de direita revela agora o seu novo acordo, o seu neo-super-auto-keynesianíssimo: num mandato, destruir o Estado Social, no outro, apostar no Estado Social; num mandato, aumentar as desigualdades, no outro, diminuí-las. Assim pretendendo perpetuar-se no ciclo de poder. Num mandato, tratar os portugueses como trouxas, no outro, tratar os portugueses como trouxas.»

Tiago Tibúrcio (facebook)

quarta-feira, 29 de julho de 2015

Onde pára o desemprego?

Conseguem as estatísticas oficiais reflectir adequadamente a realidade do desemprego em Portugal? Um primeiro exercício de resposta a esta pergunta foi aqui feito, há mais de meio ano, permitindo desmascarar os expedientes do governo para camuflar a verdadeira dimensão do problema. Nos termos desse exercício associaram-se, ao número oficial de desempregados, os desempregados ocupados, os inactivos desencorajados e os emigrantes em idade activa, assumindo que estas situações configuram formas de desemprego não reconhecidas pelas estatísticas oficiais. Posteriormente, essa análise seria revista e aprofundada, interpretando adicionalmente o subemprego como uma outra forma, mitigada, de desemprego. Ao actualizar as séries de dados para o primeiro trimestre de 2015 (a informação disponível mais recente), obtém-se o resultado que o gráfico seguinte procura traduzir.


Nestes termos:

1. Ao contrário do que diz a despudorada propaganda governamental, o desemprego não está a diminuir, sendo mais correcto falar na sua estabilização em patamares muito elevados. Com efeito, enquanto os números oficiais apontam para uma redução da Taxa de Desemprego na ordem dos 3,8 pontos percentuais, entre o primeiro trimestre de 2013 e o primeiro trimestre de 2015, a estimativa da Taxa de Desemprego Real mostra que essa descida é de apenas 0,4 pontos percentuais no mesmo período e de 0,5 pontos percentuais, caso se considere o Desemprego Real + o Subemprego.

2. Mesmo excluindo o subemprego (isto é, os activos empregados que trabalham a tempo parcial e que gostariam de poder trabalhar mais tempo) enquanto forma oculta de desemprego, uma estimativa realista da Taxa de Desemprego aponta para um valor que ronda os 25% no final do primeiro trimestre de 2015 (muito superior, portanto, aos 14% que os números oficiais apregoam). Para a divergência crescente entre estas duas taxas (Desemprego Oficial e Desemprego Real), conta sobretudo o contingente de desempregados ocupados (que passam de 23 mil em Março de 2011 para 161 mil em Março de 2015), bem como o volume de migrantes em idade activa, que constituem, no fundo, desempregados não contabilizados pelas estatísticas (apenas por terem saído do país) e que em termos acumulados passam de 12 mil para 322 mil, no período considerado.

3. Poderá argumentar-se que os números oficiais deixaram sempre de fora estas situações de desemprego, não reconhecidas como tal pelas estatísticas. E sendo isso verdade, há contudo aqui algo de substancialmente novo e que aponta para o peso crescente que essas formas ocultas de desemprego assumem, nos últimos anos, face ao desemprego total. Com efeito, se no primeiro trimestre de 2011 o Desemprego Oficial representava cerca de 61% do Desemprego Real, no período homólogo de 2013 já só representava 56% e, em Março de 2015, apenas 41%. Ou seja, a maior parte do desemprego que hoje existe em Portugal, nas suas diferentes formas, está estatisticamente oculto. Como se simplesmente não existisse.

Tem pois razão o Fundo Monetário Internacional quando afirma, como fez recentemente (contrariando o Secretário de Estado Bruno Maçães), que «Portugal precisa de 20 anos para regressar ao desemprego que tinha antes da crise». Da continuada estagnação do desemprego, nos níveis elevados em que a «austeridade expansionista» o colocou - e sem uma verdadeira alternativa às políticas de empobrecimento que a troika impôs e que o actual governo entusiasticamente abraçou - outra coisa não seria de esperar.

terça-feira, 28 de julho de 2015

Para acabar com o europeísmo


Numa parte considerável da sociedade (sobretudo nessa classe média que se imagina cidadã de uma Europa laica, democrática e respeitadora dos Direitos Humanos), defende-se o regresso a um projeto europeu perdido, como se Schäuble fosse (e não é) a antítese de tecnocratas como Schuman (o partidário de Pétain em 1940) e Monnet (horrorizado com o controlo parlamentar da política económica). Há que fazer uma reavaliação muito crítica dessa génese profundamente elitista da construção europeia, feita de despotismo esclarecido, e desta conceção e gestão das políticas europeias sempre cheia de preconceito tecnocrático que entende como populista toda a crítica ao europeísmo rançoso e dogmático, que reivindica a soberania democrática onde ela, mal ou bem, ainda se se tem a sensação de se exercer: à escala nacional.

Excerto de uma excelente crónica de Manuel Loff no Público do passado Sábado, que é todo um programa a prosseguir e a aprofundar. Está em contraste com o europeísmo social-liberal de um jornal que, sobretudo graças a Teresa de Sousa, faz da Dona Constança a sua grande referência nestes temas, entrevistando-a vezes sem conta para ouvir banalidades que contam cada vez menos, como aconteceu no passado Domingo. Loff prefere assaltar corajosamente um dos últimos redutos da linha europeísta: ai a falta que nos fazem as sábias e desinteressadas elites do passado, de uma tradição europeia inventada, note-se, de Schuman, já agora, a Delors.

De facto, a grande referência da Dona Constança foi, na realidade, uma figura central da inscrição do austeritarismo no horizonte francês e europeu, parte do esforço das elites francesas para disciplinar as suas classes trabalhadoras através de um vínculo supranacional liberal no campo monetário, financeiro e não só, quer como Ministro das Finanças na abdicação socialista de 1983, quer como Presidente da Comissão na altura de Maastricht.

O reduto que Loff assalta é, com o da paz liberal europeia, cujo assalto fica prometido, uma forma de ofuscar o que a integração realmente existente é desde a sua origem, desde a economia política do Tratado de Roma: um projecto tecnocrático neoliberal (sim, o neoliberalismo emerge, enquanto projecto intelectual, entre os anos trinta e quarenta e tem em 1957 um dos seus precoces triunfos políticos), pós-democrático e anti-socialista. A diferença está na intensidade da integração, embora aqui quantidade também seja qualidade. Enfim, os comunistas, muitos, mas mesmo muitos, socialistas e outros democratas da altura sabiam destas realidades e destes perigos. Vale por todos o ex-primeiro-ministro francês Pierre Mendés-France, no início de 1957, numa justamente célebre intervenção na Assembleia Nacional francesa:

“O projecto do mercado comum, tal como nos foi apresentado, é baseado no liberalismo clássico do século XIX, segundo o qual a concorrência pura e simples resolve todos os problemas. A abdicação de uma democracia pode assumir duas formas: o recurso a uma ditadura interna, transferindo todos os poderes para um homem providencial, ou a delegação de poderes para uma autoridade externa, que, em nome da técnica, exercerá na realidade o poder político, uma vez que, sob pretexto de uma economia sã, acabará por ditar a política monetária, orçamental, social e, em última instância, a política no sentido mais alargado do termo, nacional e internacional.”

segunda-feira, 27 de julho de 2015

Leituras


«Schäuble conta que lá em casa eram três irmãos e, quando lutavam, o pai dizia-lhes que o mais forte devia recuar. Isto para dizer que aplicou esse princípio nas negociações com a Grécia. Vejam bem o que está implícito e explícito nesta conversa. Primeiro, "o mais forte", leia-se, a Alemanha, leia-se, ele próprio. Segundo, "recuou", quer dizer, foi ele quem recuou naquela longa noite e não o grego que voltou para casa com um saco de exigências em tudo opostas ao mandato que levava. Destas coisas de lutas infantis tenho o dobro da experiência do ministro alemão. Lá em casa éramos seis irmãos e o mais forte não era sempre o mesmo. Entre derrotas, vitórias e nem uma coisa nem outra, aprendi muito e serviu-me para a vida. Recuava-se e avançava-se conforme as circunstâncias, a presença das diferentes autoridades, o sistema interno de alianças, a capacidade de persuasão e até as malfadadas botas para o pé chato, armas poderosas nos pés dos mais pequenos.»

Ana Sousa Dias, A avó de Schäuble sabia muito sobre os gregos

«A direita mais radical descobriu recentemente uma filosofia da história. (...) Entendeu que se chegou ao "fim da história" e o "fim da história" é aquilo a que chamam "realidade". Uma espécie de muro existente na física das sociedades e das nações contra o qual se vai inevitavelmente quando se abandona o caminho da "austeridade" e se encontra a TINA, o "there is no alternative". (...) [Mas] existe uma enorme confusão entre a "realidade" do "fim da história" e o poder. Aquilo que os gregos encontraram à sua frente não foi o muro da "realidade", foi o muro do poder. (...) A doutrina da "realidade" é uma justificação do poder exercido pela força. É por isso que a TINA é uma doutrina de submissão, uma espécie de justificação do direito natural dos poderosos a exercerem o poder sem limites. (...) Contrariamente ao que pensam, na questão grega, a realidade impôs-se à "realidade" e fez a história mover-se quando eles a queriam fixa no ponto ideal do seu poder. (...) Não, a "realidade" não é a história acabada num certo modelo de economia, sociedade e poder. Bem pelo contrário, está a mover-se e mais depressa do que imaginam e não é para o lado da "realidade". É para o lado de que há "alternativas".»

José Pacheco Pereira, A direita radical encontrou o "fim da história" e chama-lhe "realidade"

«O primeiro ponto de uma agenda de refundação europeia é a dissidência clara e ousada relativamente à atual trajetória destrutiva e ao poder antidemocrático instituído pelo governo da Alemanha e pelos diretórios que foi formando. O segundo é declarar sem hesitação que se denuncia o papel e a violência cínica que esse governo está a impor à mesma Europa que recuperou o seu país das cinzas geradas pela fogueira que ele próprio tinha ateado. (...) Governação económica, neste contexto, quer dizer tudo o que o “six-pack” e o Tratado Orçamental já deixaram claro que são: vigilância apertada por maus polícias; obrigação de saldos orçamentais que impeçam a ação pública, liberalizem e criem mercados para tudo; anemia da economia em nome da moeda e da banca, pois já se sabe que não é possível criar bem-estar nem crescimento em tais circunstâncias. Com elas só é possível uma estagnação longa para todos, com exceção dos que vivam à custa de todos os outros. Sim, com exceção de alguns, pois, por exemplo, o banco público alemão — sublinho público, porque (hélas!) as regras não são para todos — que iria gerir o fundo de privatizações gregas não estaria estagnado...».

José Reis, O dia em que se construiu o novo muro de Berlim: refundar a Europa com urgência

A força material da ideia

Não percebo nada de xadrez, mas gosto da metáfora.

Um universo de possibilidades que se abre num campo limitado de 64 casas, ampliado pelo movimento diferenciado de peças. E depois, gosto ainda da ideia das simultâneas de xadrez, em que uma pessoa consegue jogar em inúmeros tabuleiros ao mesmo tempo, sendo capaz de ganhar na maioria deles. E gosto da ideia de que, para isso - para ganhar nesse universo limitado, mas infinito, nesse universo concentrado - pensa-se. Pensa-se muito. E pensar é uma condição de vitória. Quem improvisa ou não tem estratégia, tende a degradar o seu terreno e a perder. Aliás, a capacidade de pensar é a única diferença no potencial dos dois inimigos: os "exércitos" são iguais, o que muda é a apenas a capacidade de pensar numa vitória.

Nada na realidade se passa assim. As lutas, as vidas, são desiguais. A História é desigual à partida. Unir é mais difícil do que desagregar. Obrigar duas ou mais pessoas a pensar, por meia hora que seja, sobre um universo limitado de 64 casas é uma tarefa inglória. A dispersão e o ruído são mais poderosos de que a concentração.

Mas essa imaterialidade do combate é apaixonante. Porque permite imaginar que é possível ganhar com uma boa ideia. Ou com uma multiplicidade de boas ideias, cada uma por cada fase do jogo.

Quando se olha para trás, é possível identificar o poder de atracção das boas ideias que ergueram vontades mais dispersas, países inteiros. E infelizmente é possível vivermos hoje em Portugal o que acontece a um país sem ideias. Ou com as ideias de outros.

É possível construir, reconstruir um país. Basta pensar como seria esse país. Nas múltiplas vertentes da sua actividade. E caminhar nessa direcção. Os escolhos e os obstáculos desenharão as opções, os amigos, os inimigos, as alianças, a realidade ou a irrealidade de um soberanismo ou de um soberanismo internacionalista ou de um internacionalismo soberanista. Mas convém ter ideias muito claras e nítidas, e não apenas a imagem fluida da emoção que gostaríamos de sentir nessa altura. Porque quanto mais clara for essa imagem do país, mais clara será a imagem que ficará na cabeça das pessoas com quem conversemos sobre ela, sobre a sinceridade, sobre a realidade da ideia. De quem a tem. E tudo o resto virá por arrasto.

Pelo menos, gosto de pensar que sim.

sábado, 25 de julho de 2015

Referências


Qual Habermas, qual carapuça: o historiador marxista Perry Anderson, fundador da New Left Review, é que deveria ser uma das grandes referências intelectuais da malta que quer pensar criticamente a Europa. Não é por acaso que Anderson tem tido como um dos seus principais alvos o enfadonho, tantas vezes equivocado e volúvel teórico de Frankfurt (e estou apenas a cingir-me aos seus escritos sobre a integração, que conheço razoavelmente bem). De facto, considero que neste campo Habermas é o símbolo maior de tudo o que hoje está mal na esquerda europeia, o europeísmo pós-nacional que acaba por ter de cair explicitamente nos braços de Draghi, como de resto se vê logo no início deste artigo. E nem é preciso recuar às suas posições sobre a constituição europeia enviada para o caixote do lixo da história pelas classes populares francesas e por Anderson num artigo presciente...

Mestre da análise intelectual e política realista, profundo conhecedor da direita intransigente e das abdicações da esquerda, Anderson forja as analogias históricas pertinentes, do processo de unificação alemã nos anos sessenta do século XIX aos anos vinte e trinta do padrão-ouro e da depressão no século XX. Bom, o seu artigo na Jacobin, a revista que hoje está ombro a ombro com a sua NLR no firmamento intelectual da esquerda que não desiste, é Anderson destilado. A tradução do excerto é minha:

“No curto prazo, não há dúvida que Tsipras florescerá na ruína das suas promessas, tal como o líder trabalhista Ramsay MacDonald – a comparação estrangeira mais óbvia – o fez na Grã-Bretanha, à frente de um governo de unidade nacional, composto por conservadores e impondo a austeridade em plena Depressão, antes de ser enterrado pelo desprezo dos seus contemporâneos e da posteridade (...)

(...) O que dizer da lógica mais ampla da crise? Como todas as sondagens indicam, o apoio à UE caiu a pique, um pouco por todo o lado, na última década e por boas razões. É hoje amplamente vista como aquilo em que se tornou: uma estrutura oligárquica, infestada de corrupção, construída na base da negação de qualquer forma de soberania popular, impondo um amargo regime económico de privilégio para uns poucos e de austeridade para a maioria.

No entanto, tal não significa que enfrente qualquer perigo mortal por parte dos de baixo. É verdade que a raiva popular está a crescer. Mas o medo ainda é mais forte. Num contexto de insegurança crescente, mas que ainda não chega à catástrofe, o primeiro instinto consiste em aderir ao que existe, por muito repelente que seja, ao invés de apostar no que pode ser radicalmente diferente. Isso só mudará quando a raiva superar o medo. Por enquanto, os que vivem do medo – a classe política a que Tsipras e os seus amigos se juntaram – estão seguros.”

sexta-feira, 24 de julho de 2015

Aprender com a derrota da Grécia


O governo grego afinal ajoelhou, melhor, rastejou e engoliu tudo o que se propunha eliminar quando foi eleito. Não mudou a UE, como prometeu. Não acabou com a austeridade e as privatizações, como prometeu. Não se libertou das equipas técnicas da troika dentro dos ministérios, como prometeu. E ainda não sabe o que pode obter quanto a um “alívio” da dívida pública. Em tempos manifestei o meu receio de que o Syriza não estivesse à altura do desafio que lançou à UE (“Germanização ou soberania?”). Infelizmente, os meus maiores receios confirmaram-se.

Confrontado com o Diktat do Eurogrupo, Alexis Tsipras e a maioria do seu governo alimentaram a ilusão de um possível “acordo honesto e vantajoso para as duas partes” e não se prepararam, nem prepararam o povo grego, para a ruptura no melhor momento. Quando convocou o referendo, Tsipras tinha a obrigação de aceitar o repto da direita e dizer ao povo grego que a experiência de longos meses de negociações falhadas o obrigava a concluir que um “não” implicava a provável expulsão de facto do euro através do BCE. O que se seguiu foi penoso e humilhante. Uma pesada derrota para a esquerda que ainda acreditava na mudança da UE por dentro, uma derrota que terá repercussões negativas nos resultados eleitorais do Podemos em Espanha.

Repare-se que Tsipras e Varoufakis sempre disseram que não punham em causa a participação da Grécia na zona euro. Rapidamente os seus interlocutores perceberam que tinham pela frente um adversário frágil (as divisões internas eram do domínio público), sem qualquer trunfo negocial. Como é possível que a direcção do Syriza tenha sido tão incapaz neste confronto vital? A explicação que encontro para este suicídio político remete para o enorme poder das ideias, em particular das ideologias. De facto, durante o processo negocial, Tsipras e a maioria do governo grego mantiveram intacto o seu europeísmo de esquerda. Esta ideologia tem raízes na cultura política do eurocomunismo, também dominante no que resta do Partido Comunista Francês e na esquerda europeia que ainda sonha com uma globalização progressista. Para estes sectores da esquerda, o fim do euro é “um retrocesso civilizacional”. Assim, a derrota do governo grego foi causada, em última instância, por uma cegueira ideológica que o impediu de perceber o significado do impasse em que caiu e de, a partir daí, mobilizar o povo grego para a aceitação das implicações últimas da recusa da austeridade.

Após a derrota, Tsipras e Tsakalotos já disseram que não havia alternativa à capitulação por falta de condições financeiras. Apesar das viagens a Moscovo, Putin terá falhado com o apoio financeiro de que os gregos precisariam para poderem bater com a porta. Também o apoio da China não se terá concretizado, pelo que, sem reservas em dólares, seria uma catástrofe sair do euro. De facto, quando permanecer no euro é uma preferência ideológica, tudo se converte em obstáculos intransponíveis para justificar uma inércia de meses e a evidente desorientação nos últimos dias. Em boa verdade, as contas externas gregas têm estado perto do equilíbrio, pelo que apenas seria necessária uma reserva de segurança para evitar problemas imprevistos no abastecimento de bens essenciais importados.

Jacques Sapir até deu algumas pistas para a constituição imediata dessa reserva (“Les conditions d’un "Grexit""), incluindo o adiantamento de 5 mil milhões pelo gasoduto russo em território grego, mas, como é evidente, o que mais escasseava no núcleo duro do governo era a vontade política de estar à altura do entusiasmo das classes mais desfavorecidas, que votaram “não”. Em vez de as convocar para irem juntos na recusa da austeridade até às últimas consequências, Tsipras converteu o grito soberano do “não” num humilhante “sim” a mais austeridade. Entretanto, alguma esquerda portuguesa já começou a explicar porque devemos continuar a apoiar Tsipras e o seu governo. Fica-lhe bem, mas infelizmente isso pode querer dizer que nada aprenderam com esta pesada derrota.

(O meu artigo no jornal i)

quinta-feira, 23 de julho de 2015

Boaventura Sousa Santos e “o problema alemão”

Boaventura Sousa Santos (BSS) escreve hoje no Público um texto intitulado: "A Alemanha como problema". Há uma ideia-chave no texto do sociólogo com que estou de acordo e duas ideias implícitas com que não estou.

Escreve BSS: "o soberanismo está já instalado na Europa, só que sob duas formas: o soberanismo ofensivo dos fortes (encabeçado pela Alemanha) e o soberanismo defensivo dos fracos (tentado pelos países do sul, a que se junta, ainda meio atordoada, a própria França). No contexto europeu, o soberanismo ou o nacionalismo entre desiguais é um convite à guerra. Daí que, por mais ténue que seja a possibilidade de êxito, há que tentar reconstruir a União Europeia sobre bases democráticas, uma Europa dos povos onde deixem de dominar burocratas cinzentos e não eleitos ao serviço dos clientes mais fortes ante a distração fácil de representantes democraticamente eleitos mas politicamente desarmados."

Subescrevo a noção de que o processo de integração europeia tem sido um mecanismo eficaz para prevenir conflitos bélicos na Europa desde a 2ª Guerra Mundial (mesmo tendo presente as guerras nos Balcãs e o conflito na Ucrânia) – e, nem que seja por isso, não devemos desistir da construção de um projecto integração democrático na Europa. Também me revejo na ideia de que um ingrediente fundamental desse relativo sucesso tem sido o facto de ter permitido, até há uns anos, lidar com o chamado "problema alemão" (que podemos resumir, seguindo BSS, como a circunstância de a Alemanha sempre ter sido de ser grande de mais para a Europa e pequena de mais para o mundo).

Há, no entanto, duas ideias implícitas no texto de BSS que não subscrevo.

A primeira é a de que o ressurgimento do "problema alemão" constitui o principal sinal de que a UE, tal como existe, perdeu a sua razão de ser. Na verdade, estou convencido que a social-democracia europeia aceitou trocar uma tentativa (falhada)de prevenção do “problema alemão” pela imposição de um modelo de desenvolvimento económico e social profundamente conservador – e este foi um erro histórico que gostaria de não voltar a ver repetido. Ou seja, creio que a esquerda deve rejeitar qualquer “aprofundamento” da integração (mesmo que tal ajudasse a minorar o “problema alemão”) que não envolva uma alteração profunda dos elementos-chave que fazem da UE o principal agente de destruição do modelo social europeu na actualidade.

A segunda ideia implícita no texto de BSS que não subscrevo é a de que a defesa da soberania nacional é incompatível com o ideal de construção de uma integração europeia democrática. A questão é esta: o espaço nacional é hoje o espaço privilegiado para os cidadãos europeus lutarem democraticamente pelos seus direitos. Defendemos a soberania nacional porque defendemos a democracia - e é ao nível nacional que ainda vamos tendo possibilidade de a exercer.

Precisamos, pois, de um “internacionalismo soberanista” (a expressão é roubada a uma parecida do João Rodrigues): um apelo a que os cidadãos lutem pelos seus direitos onde eles podem ser efectivamente exercidos - defendendo a soberania nacional como reduto dos valores democráticos - sem deixarmos de pensar a construção da democracia além-fronteiras.

Bem sentados

Como já referido abaixo pelo João Rodrigues, na semana passada tivemos um excelente debate a propósito do lançamento do livro "De pé, Ó vítimas da dívida". Graças ao excelente trabalho do Nuno Fonseca, ficam aqui os vídeos das principais intervenções. Um caso sério de convergência substantiva à esquerda, para lá das palavras de ordem.

 João Rodrigues



Eugénia Pires



Mariana Mortágua



Octávio Teixeira



Também conseguimos esse feito raro da paridade de género num painel de economistas.

De Pé, Ó Vítimas da Dívida: Porto e Lisboa

Na próxima sexta-feira, 24 de Julho, eu e o Nuno Teles estaremos no Porto a debater o livro De Pé, Ó Vítimas da Dívida, pelas 21h30m, na livraria gato vadio. Apareçam para trocarmos umas ideias sobre os assuntos. Entretanto, na semana passada, participámos num debate em Lisboa, tendo também como pretexto o lançamento deste livro. As principais intervenções estiveram a cargo de Eugénia Pires, Mariana Mortágua e Octávio Teixeira, economistas com distinta intervenção pública. Falando naturalmente a título individual, embora filiados, respectivamente, no Livre/Tempo de Avançar, BE e PCP, a verdade é que convergiram no essencial no diagnóstico da situação e nas implicações a retirar em termos de políticas: temos de pensar em reestruturar a dívida no interesse do país e em sair do euro para podermos ter margem de manobra democrática, para podermos ter políticas de esquerda, foi de forma muito, mas mesmo muito, resumida o que disseram. A audiência, de várias dezenas de pessoas (certamente mais de 50 e talvez menos de 100), a avaliar pela esmagadora maioria das intervenções, concordou. Foi aí que tive a nítida sensação de um tempo AG e de um DG (Antes e Depois de Grécia). De resto, o Le Monde diplomatique – edição portuguesa cumpre desta forma uma das suas funções: organizar um debate plural entre as esquerdas, ainda que seja para constatar que na substância há hoje muito mais caminho intelectual para convergências políticas. Voltaremos a falar disto.

quarta-feira, 22 de julho de 2015

Ler ladrões


Se há ladrões que, por uma razão ou por outra, temporariamente não vêm ao blogue, então o blogue vai ter com eles: Aprender com a derrota e Euro: o telhado que destruiu o edifício, por Alexandre Abreu; Grécia e agora? Debatamos para lutar melhor, por José Maria Castro Caldas. Três reflexões a não perder.

Da ordem

O neoliberalismo deve ser visto como uma forma radical de construtivismo pós-democrático, com uma relevante componente legislativa ao serviço do reforço dos direitos das forças sociais capitalistas, mas ideologicamente disfarçado com conversas mais ou menos naturalistas sobre a ordem espontânea dos mercados sem alternativas que não sejam artificiais.

Olhem para mais 900 páginas de legislação imposta pelo euro-imperialismo. Segundo o The Guardian, os deputados gregos aprovarão hoje à noite este tijolo, sem escrutínio e sem alterações. Tirem, uma vez mais, as vossas conclusões sobre o europeísmo realmente existente.

Entretanto, como assinala Stahis Kouvelakis, neste contexto anti-político, “Tsipras, que é também o presidente do Syriza, recusa convocar o comité central do partido, apesar de a maioria dos seus membros o ter requerido numa declaração onde também rejeita o acordo”. Realmente, isto não augura nada de bom.

O momento a partir do qual se torna difícil dizer «não sabíamos»


Pode supor-se que algures no decurso da Segunda Guerra Mundial tenha existido um momento em que a informação disponível era já suficiente para que «os alemães» não pudessem, com facilidade, alegar desconhecer o que se estava a passar. Sobretudo, não suspeitar sequer dos horrores para lá do horror da própria guerra. Imaginar que assim foi não permite porém julgamentos morais liminares, assentes no preconceito xenófobo que se estende a todo um povo (e que não se distingue, na sua essência, do que atribui «aos gregos», «aos italianos» ou «aos portugueses» uma espécie de propensão genética para a preguiça, a corrupção, o desleixo orçamental ou outros traços de personalidade colectiva).

A não ser, claro, que se prefira subestimar os efeitos de uma máquina implacável de propaganda e desinformação (então como agora), desvalorizar medos e sentimentos de impotência para enfrentar internamente uma ditadura (militar ou financeira), ou relativizar os efeitos de um nacionalismo cultivado até patamares demenciais de alienação. Seja como for, da Segunda Grande Guerra ficará para sempre esta perplexidade, na sua formulação mais simples: como foi possível que um povo tenha contemporizado, permitido ou pactuado com o «mal»? Como foi possível que não se tenha erguido contra esse mal, que não tenha posto cobro às atrocidades que estavam a ocorrer?

Nos últimos meses, e em particular nas últimas semanas, marcadas pela realização do referendo grego e posterior imposição, à Grécia, de um «acordo» meramente punitivo, ficámos a conhecer o verdadeiro rosto desta Europa, usurpada por «instituições sem cultura nem projecto, apenas detentoras de poderes que inventaram para si mesmas e que se auto-atribuíram de maneira ilegítima e insensata». A máscara que escondia esse rosto desfez-se, ora por erosão lenta e quase imperceptível, ora por momentos de desmoronamento súbito. E o resultado está hoje à vista de todos os cidadãos europeus, que podem assim contemplar uma estrutura de governação em que «nenhuma dissidência é tolerada [e na qual] a austeridade é o castigo que está reservado a qualquer povo que ouse eleger um governo que lhe queira por fim».

Quando se fizer a história dos tempos que correm - e salvaguardando qualquer intuito de comparação com o passado (não é evidentemente disso que se trata) - tornar-se-á difícil aceitar que o povo europeu não tenha percebido o que lhe estava a acontecer. A menos que, de novo, se desvalorize a propaganda, o medo, o sentimento de impotência ou o empenho colaboracionista de alguns governos (entre os quais socialismos e social-democracias). A tarefa imediata que temos pela frente, e que não exclui nenhum país, é pois a de pôr freio a esta Europa. E isso não se consegue pela simples deposição de alguns governantes (como Schäuble) ou através de fugas para a frente, no esteio do federalismo. A «construção europeia» a que chegámos é hoje um solo demasiado salgado e estéril para que se pense que dele possa emergir outra coisa que não monstros ainda maiores e mais fortes.

terça-feira, 21 de julho de 2015

Amanhã, em Lisboa: CDA promove debate sobre a Grécia


«Joga-se hoje na Grécia não só o futuro do euro e da crise das dívidas soberanas, mas provavelmente também o futuro da União Europeia e a definição do que serão as regras de convivência que irão marcar o nosso futuro próximo. A situação que vivemos é extremamente complexa, as posições dos vários Estados e dos vários actores políticos em campo são em larga medida imprevisíveis e não é impossível que a situação política sofra uma degradação súbita. Os cidadãos da Europa sentem que aquilo que hoje discutimos e temos de defender é o futuro da democracia. Neste momento em que, mais do que nunca, é importante aprofundar o debate e clarificar posições, o CDA convida as cidadãs e os cidadãos de Lisboa para um debate sobre a situação grega, a União Europeia e a democracia na Europa.»

Com a participação de Pedro Nuno Santos, José Guilherme Gusmão e José Maria Castro Caldas, o debate promovido pelo Congresso Democrático das Alternativas realiza-se amanhã, 22 de Julho, no Café Vává (Avenida dos EUA, 100), a partir das 18h30. Apareçam!

Dos últimos dias para os próximos tempos



1. Imperdível intervenção de Costas Lapavitsas, que vale mesmo a pena legendar. É um dos deputados do Syriza que sabe o que quer dizer oxi e que dispensa mais apresentações para os leitores deste blogue, já que o autor de Profiting Without Producing (lucrar sem produzir) é hoje a minha principal referência intelectual no campo da economia política marxista.

2. A mais longa nota de rendição de um governo democrático sem plano B, nome de código eurocrático SN4070/15, anotada pelo seu anterior Ministro das Finanças, Yanis Varoufakis, um europeísta idealista, impotente perante os tanques financeiros do europeísmo realmente existente e que, tarde demais, acabou por reconhecer que sair do euro era mesmo a única proposta modesta.

3. Entrevista a James Galbraith, onde um dos mais importantes economistas keynesianos norte-americanos, conselheiro de Varoufakis, e co-autor da europeísta (i)modesta proposta, também reconhece que sair era no fim a única alternativa e que Tsipras pode ter sido mal informado quando defendeu que esta não era tecnicamente possível, usando, digo eu, um truque antigo: embrulhar más escolhas políticas num mau papel técnico. Galbraith escreveu também um artigo na Harper's, defendendo, entre outras coisas realistas, que “a Grécia deixou de ser um Estado independente” e que “as forças progressistas e democráticas têm de se reagrupar em torno da bandeira da restauração democrática nacional”.

4. Entretanto, a cavalaria pesada, ainda que na forma abastardada do keynesianismo da síntese neoclássica, chega pelo teclado do mais influente intelectual público, o que consegue escrever postais que chegam aos telejornais portugueses em canal aberto: estou a falar obviamente de Paul Krugman. Tendo sobrestimado o Syriza, porque pensou que este tinha um plano B, Krugman concluiu muito recentemente que sair do euro é possivelmente a melhor solução para a Grécia, juntando-se ao coro argentino-grego, o que deixa o europeísmo cada vez mais sozinho no campo da política económica que aprende algumas coisas com uma certa história económica. Habituem-se.

segunda-feira, 20 de julho de 2015

Rui Tavares e o Sr. Schäuble

Na última semana, Rui Tavares (RT) dedicou dois dos seus textos no Público ao Ministro das Finanças alemão, a quem apelidou de “Sr. Anti-Europa”, considerando-o como “a maior ameaça que paira sobre a Europa”. Quem levar à letra os textos de RT fica convencido que o Sr. Schäuble é hoje o principal responsável pela austeridade e pelas tendências antidemocráticas na UE, os quais “destroem países e instituições, a confiança dos cidadãos na política e a crença dos europeus nas possibilidades de futuro em paz e dignidade neste continente”.

Schäuble não é, decididamente, um personagem simpático. O seu ar mal-encarado, as suas tiradas de humor duvidoso, a forma despudorada como explicita o preconceito dominante na Alemanha sobre os povos do sul – tudo isto são ingredientes que acentuam o mal-estar que se vive actualmente na UE. Daqui a transformar o ministro alemão no principal obstáculo a uma resolução das tensões que se vivem na UE é um passo de gigante.

Schäuble não é responsável pelo Acto Único Europeu, nem pelo Tratado de Maastricht, nem pelo Tratado de Amesterdão, nem pelo Tratado de Nice, nem pela transformação da Agenda de Lisboa num programa ultraliberal, nem pelo Tratado de Lisboa. Não é responsável pela política de concorrência europeia, nem pelo Pacto de Estabilidade e Crescimento, nem pelo Acordo de Schengen, nem pelo TTIP, nem pela ausência de harmonização fiscal ou dos direitos sociais na UE.

Ao longo dos últimos 30 anos não faltou quem alertasse para as consequências expectáveis da UE que estava em construção: o aumento da instabilidade financeira, os crescentes custos sociais do ajustamento na sequência de choques económicos, o acentuar da divergência entre países deficitários e excedentários, as crescentes tensões políticas decorrentes de interesses nacionais irreconciliáveis, e o reforço das forças de extrema-direita como resultado de tudo isto. Não foi preciso Schäuble para que isto acontecesse – e, seguramente, não será a saída de cena deste senhor que transformará a Europa.

De resto, o Rui Tavares sabe disto. Escreveu várias vezes que a UE e a zona euro só poderiam ser compatíveis com a sua própria visão de uma Europa democrática e socialmente justa caso fossem introduzidas alterações de fundo no processo de integração, incluindo: a criação um Tesouro Europeu com possibilidade de emitir dívida em nome da União, uma efectiva união bancária, a coordenação fiscal entre Estados Membros, a criação de uma agência de relançamento da União, a implementação de um grande plano de investimentos de nível europeu, uma profunda reestruturação das dívidas, etc.

E sabe também o quão longe estamos disto tudo. Como escreve no seu livro “A Ironia do Projecto Europeu”, para se concretizar um plano que parece simples no papel seria necessário “mudar os Tratados. Para mudar os Tratados seria preciso reunir uma Convenção com o Parlamento Europeu e os Parlamentos Nacionais. Para reunir uma Convenção seria preciso receber um mandato do Conselho. No mundo real, o Conselho não nos vai dar um mandato para fazermos uma revolução democrática na União Europeia.” (p.183)

No entanto, nestes dias de tormenta para o ideal da integração europeia, RT opta por fazer de Schäuble o alvo dos seus ataques, deixando para outra ocasião a reflexão sobre as dificuldades que se colocam ao desenvolvimento das periferias da zona euro dentro das regras vigentes. Como noutras ocasiões, opta no texto de hoje por discutir no abstracto possíveis soluções para a reestruturação das dívidas soberanas que contornam os argumentos de Schäuble, abstraindo das dificuldades práticas da concretização de qualquer uma dessas soluções ou da relevância do seu impacto potencial.

Não são de agora as minhas divergências com RT sobre a possibilidade de regeneração, através dos mecanismos instituídos, de uma UE que ambos concordamos ser intrinsecamente antidemocrática e destruidora de direitos sociais conquistados a custo. Na verdade, estas divergências são o que me preocupa menos na actualidade. É que Rui Tavares não é apenas um intelectual público: é o líder de um partido e o cabeça-de-lista por Lisboa nas eleições legislativas. Neste contexto, interessa-me pouco se algum dia conseguiremos ou não convergir nas nossas crenças sobre o futuro da UE.

Se RT for eleito deputado terá de decidir até ao final do ano como votará as propostas de Programa de Governo e de Orçamento de Estado para 2016. Com grande probabilidade, o próximo governo será pressionado pelas instituições europeias (e não apenas pelo Ministro das Finanças alemão) a cortar na despesa com educação, saúde e protecção social, bem como a desregulamentar ainda mais a legislação do trabalho. Interessa-me muito saber como Rui Tavares - ou qualquer outro potencial deputado - votará neste tipo de questões fundamentais. Importam-me menos as suas diatribes contra o Sr. Schäuble.

Memória (IX)


«Nós calculámos e estimámos e eu posso garantir-vos: Não será necessário em Portugal cortar mais salários nem despedir gente para poder cumprir um programa de saneamento financeiro. (...) O PSD quis vasculhar tudo para ter as contas bem feitas e, relativamente a tudo o que o governo não elucidou bem procurou estimar, preferindo fazê-lo por excesso do que por defeitoPassos Coelho (Abril 2011)

«A negociação foi essencialmente influenciada pelo PSD. (...) Nós vamos ser muito mais radicais no nosso programa do que a troika, vamos ser muito mais radicais. (...) Penso que o PSD, através da equipa que eu chefiei, deu um grande contributo para este processoEduardo Catroga (Maio 2011)

«Nunca partirei do princípio que não seremos capazes de cumprir [acordo da troika] porque eu acredito que o país pode cumprir, vai ser muito difícil, mas vamos cumprir. (...) Por isso é que disse sempre que o programa do PSD está muito para além daquilo que a 'troika' propõePassos Coelho (Junho 2011)

«Quando eu o recebi, o programa não era cumprível. As contas estavam mal feitas e não fui eu que as fiz. Constavam do memorando assinado entre o Governo e troikaPassos Coelho (Julho 2015)

domingo, 19 de julho de 2015

Passos Coelho mente? Rebobine a gravação


Ler uma entrevista televisionada – como a de Passos Coelho à SIC na passada 2ª feira - é todo um outro exercício.

A palavra escrita tem um peso que a palavra dita perde rapidamente. E amplia-se a distância entre a realidade e o discurso político. Entre a verdade e a mentira.

Comece-se naquela parte em que o primeiro-ministro fala do modelo económico.

Play.

Pedro Passos Coelho: O PS tem defendido que a recuperação económica do país possa ser liderada pelo consumo interno...

Clara de Sousa: Mas o PSD também...

Pedro Passos Coelho: Há uma pequena diferença é que já estamos a crescer. É uma pequeníssima diferença entre o que o PS diz e o que...

Clara de Sousa: Cresce de forma ténue...

Pedro Passos Coelho: Vamos crescer 1,5% este ano, crescemos 0,9% no ano passado, os dados do emprego têm sido favoráveis, ao contrário do que aconteceu há alguns anos atrás com o PS. Há resultados para mostrar que são positivos.
Aquilo que o PS tem proposto em matéria económica é que o consumo deve liderar o crescimento, enquanto que, do nosso ponto de vista, isso é a estratégia que conduziu o país – erradamente - a uma situação de dependência externa e a uma situação de desequilíbrio macroeconómico muito grande que nos custou muito a corrigir. (...) Não nos parece uma escolha correcta e parece-nos uma escolha arriscada. Arriscada porquê? Porque dizer aos trabalhadores que vão descontar menos para a Segurança Social por contrapartida de pensões mais baixas que vão ter no futuro, para poder ter mais dinheiro para gastar hoje, porque o que é importante para criar emprego e gerar crescimento é pôr as pessoas a gastar mais dinheiro, essa é uma estratégia que nos parece arriscada porque já provou no passado ser uma estratégia que conduz o país a desequilíbrio externo e à não criação de condições para uma riqueza que possa aparecer, um crescimento que possa aparecer sustentadamente. Isso aconteceu em 2009 embora com fins eleitoralistas: aumentaram-se os funcionários públicos, baixaram-se os impostos, portanto deu-se mais dinheiro às pessoas para gastar. E isso foi – com se recorda – sol de pouca dura. Porque o que teve de se fazer a seguir foi fazer tudo ao contrário, cortar tudo, contrair a economia, porque se tinha sido improdudente. Nós não podemos ser imprudentes nesta altura.

[Stop. Pare-se a gravação para ver o gráfico dos últimos anos.

sábado, 18 de julho de 2015

Lexit...


"Os progressistas devem estar horrorizados perante a ruína da Grécia causada pela União Europeia. Chegou o tempo de assumir a causa eurocéptica." Owen Jones, um dos cronistas e ensaístas britânicos à esquerda que vale a pena ler, justifica uma viragem importante, forjando mais um termo, "lexit", saída da UE pela esquerda, contra um certo establishment. Serão cada vez mais nestes tempos DG (Depois de Grécia), também no contexto particular da discussão do Brexit. Afinal de contas, a política de esquerda também não é possível no quadro das regras do mercado único inscritas em Bruxelas, regras essa que tiveram em Thatcher uma das suas principais campeãs, como nos indica a melhor história neoliberal da integração.

Como Jones lembra, esta posição eurocéptica, rara entre a esquerda britânica nos anos AG (Antes de Grécia) mais recentes, tem, na realidade, pergaminhos históricos no trabalhismo britânico, quando este ainda estava comprometido com o reformismo de matriz socialista. Basta pensar na forma como os trabalhistas britânicos radiografaram o ADN liberal e anti-socialista da integração, presente no próprio Tratado de Roma. Não por acaso, foi a partir da esquerda do trabalhismo que, nos anos setenta, chegaram algumas das críticas mais pujantes, feitas por gigantes como Tony Benn, à adesão à então CEE.

Apesar do europeísmo estar relacionado com a diluição ideológica do trabalhismo, tal como aconteceu com a restante social-democracia europeia, a verdade é que mesmo o chamado novo trabalhismo, graças a Gordon Brown e a muitos economistas, não cometeu o erro de aderir ao Euro, ao contrário do que pretendia Tony Blair. Nós bem que devíamos ter avaliado melhor os nossos interesses e seguido a Grã-Bretanha nesta área, evitando este enredamento continental trágico. Sairemos dele e das regras constrangedoras do mercado único, no quadro de uma cooperação europeia flexível e a várias velocidades, nunca percamos o optimismo da vontade, mas, se depender das nossas medíocres elites do poder e de demasiada oposição, só depois de termos tentado tudo o resto…

sexta-feira, 17 de julho de 2015

Síndrome de Frankfurt


Já ouviram falar do Síndrome de Frankfurt? Trata-se simplesmente de uma variante, no campo da economia política do euro, do famoso Síndrome de Estocolmo, ou seja, um estado psicológico em que um indivíduo europeísta submetido durante algum tempo a um processo de intimidação financeira pelo BCE, o verdadeiro soberano monetário da Zona Euro, passa a simpatizar com o seu agressor, personificado na figura do antigo Goldman Sachs Mario Draghi, podendo mesmo chegar a vê-lo como o salvador. Este estado dá-se, por exemplo, quando o intimidador aumenta a liquidez aos bancos ou acena ao intimidado europeísta, agora totalmente submetido, com a reestruturação da dívida nos termos dos credores, usando-a abertamente como instrumento de conformação com a ordem neoliberal e com as suas decorrências pós-democráticas. O Síndrome de Washington, que envolve o FMI e os próprios EUA, é muito semelhante, embora com mecanismos menos poderosos no caso dos indivíduos europeístas, claro. Afinal de contas, estamos na Zona Euro.

quinta-feira, 16 de julho de 2015

Fundo de Activos ou Pacote de Indemnizações?

Depois de ter sugerido a Jack Lew que a Europa poderia «ficar com Porto Rico na zona euro, se os Estados Unidos estivessem dispostos a levar a Grécia para o dólar», e de surgir no Conselho Europeu do passado fim-de-semana a hipótese de transferir um fundo de activos gregos (no valor de 50 mil milhões de euros), para uma instituição independente no Luxemburgo, gerida por um banco estatal alemão que tem o próprio Schäuble como chairman e Sigmar Gabriel (líder do SPD e responsável pela pasta da Economia) como vice-chairman, o ministro das Finanças alemão veio ontem dizer que cabe ao governo grego encontrar uma «solução de financiamento temporário para a Grécia», tendo em vista resolver as necessidades urgentes de liquidez.

Se não vivêssemos em tempos virados do avesso, com a Europa dominada pelos interesses financeiros e bancários, em vez de exigir ao governo grego as tais ideias para a constituição do referido fundo de activos (que sirvam de garantia de empréstimos), Schäuble estaria incumbido de uma outra tarefa: a de estimar o valor do pacote de indemnizações a atribuir à Grécia, pela destruição provocada na economia e na sociedade, em resultado do fracasso das políticas de austeridade impostas ao país nos últimos cinco anos.

Aliás, se estivéssemos numa sala com políticos adultos, responsáveis pelas suas decisões e pelas consequências das suas imposições, nenhuma negociação com o novo governo grego, eleito em Janeiro, poderia ter-se iniciado sem que antes fosse feita uma avaliação muito séria do fracasso da austeridade. Mais que isso, nenhum governo europeu que se afirma socialista ou social-democrata - e que reverbera a sua oposição à austeridade - poderia ter condescendido e pactuado com o tipo de medidas impostas à Grécia no célebre «acordo» do passado fim-de-semana. Medidas que insistem no erro, prolongando e acentuando a devastação já causada, e cujo apoio por parte desses governos ditos de esquerda - mas que continuam na defensiva e incapazes de sair da toca dos calculismos - descredibiliza de uma penada, na prática, quaisquer discursos contra a austeridade e em defesa de verdadeiras alternativas para sair da crise.

quarta-feira, 15 de julho de 2015

A visão de um dirigente destacado da ala esquerda do Syriza sobre a condução do processo negocial da Grécia

“Toda a abordagem confrontacional [seguida pelo governo grego, consistia na ideia de que] temos que jogar o jogo até mesmo, mesmo, mesmo ao fim e, em seguida, eles [governos da UE e instituições internacionais] iriam recuar, porque supostamente o dano que teriam de aguentar caso não o fizessem seria grande demais. Mas o que realmente aconteceu foi semelhante a uma luta entre duas pessoas, onde uma pessoa corre o risco de perder um dedo do pé e a outra as duas pernas.”

“[Tsipras, Varoufakis e Tsakalotos] acreditaram até ao fim que poderiam obter algo da troika, pensavam que se iria encontrar algum tipo de compromisso entre "parceiros" que compartilhavam alguns valores fundamentais, como seja o respeito pelo mandato democrático, ou a possibilidade de uma discussão racional com base em argumentos económicos.”

“Isto diz muito sobre uma esquerda que está repleta de pessoas bem-intencionadas, mas que são totalmente impotentes no campo da política real. Mas diz muito também sobre o tipo de devastação mental, forjado pela crença quase religiosa no europeísmo.”

Vale a pena ler na íntegra a entrevista de Stathis Kouvelakis ao site Jacobin.

E o povo unido, pá?

Sobre as decisões anunciadas pela Cimeira do Euro sobre a Grécia, parece que na substância não há partidariamente muito mais a acrescentar ao que os comunistas portugueses disseram. A questão, que não é só retórica, a colocar neste contexto é a seguinte: por que é que os outros partidos de esquerda em Portugal ainda não indicam, eventualmente com outras formulações, pelo menos tão claramente as implicações a retirar em termos da soberania que há que reconquistar; isto num momento em que a natureza imperialmente neoliberal da integração europeia que nos conduziu até aqui nunca foi tão transparente?

Nesta matéria europeia, a unidade, o tal povo unido, terá de se fazer, mais coisa, menos coisa, nos termos do diagnóstico e do programa que os comunistas defendem, embora, como os próprios reconhecem, a sua proposta precise de ser desenvolvida. Até ao bloco central europeu, até à satisfação de Passos e de Costa pela punição da Grécia, não existe outra posição consistente para este país. Neste contexto, talvez valha a pena repetir o que aqui escrevi no final do ano passado:

Em 2015, a democracia na escala onde esta ainda pode existir vai ser testada e os poderes pós-democráticos com escala europeia também. Em caso de vitória do Syriza, eu apostaria em dois cenários, dado que a reforma progressista das instituições europeias não está disponível (quais os mecanismos?): a cooptação do Syriza ou a saída do euro. Se isto for verdade, os europeístas de esquerda ficarão, por cá, sem programa em caso de vitória do igualmente europeísta Syriza, confirmando que no euro não há espaço para alternativas ao serviço do povo. Seja como for, o mais importante por agora é a solidariedade com o povo grego e com a sua soberania democrática.

Lançamento no Porto: «O que fazer com este país»


«Olho para as pessoas da geração dos meus pais e vejo-as entrar na reforma angustiadas com um fim de vida que deveria ser de descanso e lazer. Olho para a minha geração e vejo-a pôr em causa as opções que fizemos no início da nossa vida adulta, pensadas para um futuro que afinal não existiu. Olho para os meus alunos e vejo-os preparar a saída do país depois de terminarem o curso, mais resignados do que esperançosos. Perante isto, olho para os meus filhos e pergunto-lhes em pensamento: que faremos com este país?»

Da introdução do livro de Ricardo Paes Mamede, O que fazer com este país, que será amanhã, 16 de Julho, apresentado no Porto por Ricardo Arroja (economista) e Virgílio Borges Pereira (sociólogo). O lançamento é na Fnac de Santa Catarina (Rua de Santa Catarina, 73), a partir das 18h00. Apareçam.

terça-feira, 14 de julho de 2015

Debate e lançamento, quinta-feira: «De pé, ó vítimas da dívida»


«De pé, ó vítimas da fome: assim começa a "A Internacional", o hino de todas as lutas de classes contra a exploração e todas as formas de opressão. Se o espectro da fome continua a ser, em última instância, a expressão da compulsão capitalista que pesa, de forma ainda hoje demasiado invisível, sobre todos os que de seu só têm a força de trabalho para vender, também é verdade que o capitalismo, ao longo da sua história, foi criando outros mecanismos disciplinadores, de eficácia igualmente variável, que incidem não só sobre as classes trabalhadoras, mas também sobre os Estados, e mesmo sobre outras instituições económicas, em particular nas áreas mais subalternas do sistema mundial.»

Organizado por João Rodrigues e Nuno Teles, com textos de Costas Lapavitsas, Eugénia Pires, José Castro Caldas, José Guilherme Gusmão, Mariana Mortágua, Octávio Teixeira, Sara Rocha e Wolfgang Streeck, entre outros, será lançado na próxima quinta-feira, 16 de Julho, nas instalações do STEC (Largo Machado de Assis, em Lisboa), a partir das 18h30, o livro «De pé, ó vítimas da Dívida», publicado pelo Le Monde Diplomatique (edição portuguesa) e pela Deriva.

No debate de lançamento participam Eugénia Pires, João Rodrigues, Mariana Mortágua, Nuno Teles e Octávio Teixeira. Estão todos convidados, apareçam.

Leituras


«A humilhação a que o governo grego foi sujeito durante a interminável reunião do Conselho Europeu vai ficar na história como o dia em que se perderam todas as esperanças na bondade do projecto europeu. A Alemanha torturou um governo eleito, obrigando-o a capitular nas mais humilhantes condições para mostrar quem manda e quem obedece. (...) O que todo o processo nos ensina também é que não vale a pena prometer lutar contra a austeridade sem um plano B. Foi esse o pecado mortal do Syriza: não ter reconhecido à partida que um projecto antiausteridade não se faz dentro do euro. O Syriza foi eleito para permanecer no euro e acabar com a austeridade, dois programas incompatíveis, como agora ficou clarinho. Não vale a pena nenhum partido candidatar-se a dizer que não aceita a austeridade, como fizeram tantos socialistas, a começar por François Hollande, com resultados nulos. O momento da clarificação chegou.»

Ana Sá Lopes, Deustschland über alles. Toda a Europa está ocupada

«O que a Alemanha fez, sob a direcção de Schäuble, a aquiescência de Merkel, a cumplicidade gananciosa de meia dúzia de países e a assistência de uns quantos servos solícitos como Passos Coelho e a hesitação de uns políticos medrosos, como Hollande e Renzi, foi a ocupação da Grécia e a substituição do que restava de democracia por uma ditadura financeira. Não foi uma ocupação militar, mas foi uma ocupação, que roubou a Grécia da réstia de soberania que lhe sobrava. (...) A austeridade não é um remédio amargo que a Grécia não quer tomar. É uma invasão de um país por meios não militares, uma usurpação da democracia, uma substituição de governos democráticos e uma forma de eternizar a submissão política dos países. A austeridade é o novo colonialismo. E a União Europeia tornou-se a sua ponta de lança.»

José Vítor Malheiros, O fim-de-semana em que a Europa morreu

«O acordo que ontem foi imposto, sob ameaça de expulsão, traz de volta a austeridade e sequestra activos fundamentais do Estado grego. Curiosamente, nessas condições, traz também a discussão da reestruturação da dívida grega, que Schäuble tinha garantido ser contra os Tratados. (...) A esta Europa, acima de tudo, interessa a destruição da soberania nacional. Hoje foi um mau dia para a Europa e para a democracia europeia. Mas deixemo-nos de confortos. Não tivesse sido esta luta tão isolada e talvez o resultado fosse diferente. Hoje, não apenas nós, toda a gente conhece as fronteiras da chantagem. Nessa cartografia o espaço da política depende de nós mais do que nunca. Os poderosos e os seus colaboradores não querem democracia. Temos a obrigação de fazer muito mais. Sabemos hoje, como sabíamos ontem e ignorámos, que a derrota do capitalismo global precisa de mais do que um governo e um primeiro-ministro.»

Marisa Matias, E agora, Grécia? E agora, nós?

Provincianismo e dissimulação?


Talvez não tenha sido apenas um impulso de vaidade bacoca que levou Passos Coelho a anunciar que foi uma ideia sua, «utilizada pelos negociadores com o primeiro-ministro grego», que «ajudou a desbloquear as negociações». De facto, se pensarmos no desconforto da posição portuguesa, falha de solidariedade para com o governo grego - quando o nosso país corre seriamente o risco de se poder vir a converter na «próxima Grécia» - pode haver algo de mais político nesta revelação aparentemente inócua e desinteressada do primeiro-ministro português.

Perante os níveis de chantagem e pressão atingidos, no cerco montado a Tsipras e Tsakalotos, Passos Coelho bem pode ter sentido a necessidade de uma certa demarcação face à ofensiva a que se associou, fazendo assim por momentos o papel de «polícia bom». Ou seja, comportando-se como um torcionário que procura atenuar o significado dos seus actos cúmplices, dizendo que até ajudou a levar o recluso de regresso à cela, depois de participar activamente na violência do interrogatório a que esse recluso foi sujeito.

segunda-feira, 13 de julho de 2015

Temos de estar preparados para tudo - agora já é mais claro?

Da entrevista de Varoufakis à ABC:

"Como governo responsável, sabendo muito bem que havia uma aliança muito significativa no Eurogrupo cujo objectivo era lançar-nos para fora do euro, tivemos que fazer contingências". "Tínhamos de ter uma pequena equipa de pessoas a trabalhar em segredo que criaria o plano no caso de sermos forçados a sair da união monetária conhecida como zona do euro."

"Claro, há aqui um problema. Quando este plano começa a ser implementado, a partir do momento em que se passa de cinco pessoas a trabalhar nele para 500, que é o mínimo necessário para implementá-lo, o plano torna-se do conhecimento público. No momento em que se torna do conhecimento público, o poder da profecia cria uma dinâmica própria... Nós nunca fizemos essa transição de cinco para 500 pessoas. Nós nunca sentimos que tínhamos um mandato para fazê-lo. Nós nunca planeámos fazê-lo. Tivemos o projecto no papel, mas nunca foi activado."

Ou seja, um governo que esteja determinado em travar a austeridade no seu país tem de estar preparado para tudo e ter um mandato democrático claro para o efeito. Quem jura que não imporá austeridade nem sairá do euro arrisca-se a entrar rapidamente em contradição.

De resto, foi o que sempre aqui escrevemos.

Leituras imprescindíveis nestes tempos tão antiquadamente modernos


"O caracterizava o velho capitalismo, no qual dominava a livre concorrência, era a exportação de mercadorias. O que caracteriza o capitalismo moderno, no qual impera o monopólio, é a exportação de capitais. (...)

Enquanto o capitalismo for capitalismo, o excedente de capital não se consagra à elevação do nível de vida das massas do país, pois isso significa a diminuição dos lucros dos capitalistas, mas ao fomento desses lucros através da exportação de capitais para o estrangeiro para os países mais atrasados. (...)

A necessidade de exportação de capitais deve-se ao facto de que em alguns países o capitalismo 'amadureceu excessivamente' e o capital carece de campo para a sua colocação 'lucrativa'. (...)

As exportações de capitais influenciam o desenvolvimento do capitalismo nos países para que são dirigidos, acelerando-os extraordinariamente. (...)

A exportação de capitais passa a ser um meio de estimular a exportação de mercadorias. (...)

Os países exportadores de capitais dividiram, no sentido figurado da palavra, o mundo entre si. Mas o capital financeiro conduziu também à partilha directa do globo".

V.I Lenine, O imperialismo fase final do capitalismo

Uma dúzia de balanços e perspectivas

1. Estava totalmente errado sobre o significado político da viragem referendária na Grécia, que pareceu iniciar um caminho alternativo liderado por Tsipras. Desculpem, mas foi o optimismo da vontade a falar. Voltará a acontecer, claro.

2. Quem afinal de contas nunca teve um plano B, técnico e político, que teria de ser o A num contexto de fusão da questão social com a questão nacional, tem de se sujeitar à austeridade, a privatizações, a ataques de difícil reversibilidade ao salário directo e indirecto, e a ver a dívida a ser usada pelos credores, nos seus tempos e interesses, como instrumento de conformação com uma ordem pós-democrática: do absurdo à tragédia continua ser um bom resumo grego destes dias negros, negros.

3. A ideia de expulsar a Grécia do Euro, que é sempre anunciada, mas que nunca será concretizada por iniciativa de quem manda e de quem beneficia com este arranjo, teve e terá por objectivo obter a rendição dentro do Euro, o que, numa certa óptica imperialista inerente à Zona, fez ainda mais sentido político depois da última proposta apresentada pelo governo grego e que anulava politicamente o efeito de um referendo tão custoso quanto corajoso.

4. Enquanto certa esquerda luta por mínimos, já longe dos que foram fixados programaticamente, neste quadro estrutural sem instrumentos até para esses mínimos, as direitas sabem o que querem e, mais importante, têm os instrumentos máximos do Euro.

5. Neste contexto, Francisco Louçã tem obviamente toda a razão quando escreve: “enganam-se os que escrevem, na Grécia e noutros países, que estamos a assistir à surpresa de um golpe: de facto, o golpe já está inscrito nos tratados e está simplesmente a ser aplicado.” Euro-imperialismo, de facto.

6. Entretanto, o papel desempenhado pelo governo “socialista” francês na semana que passou é absolutamente coerente com a trajetória desta gente desde a trágica capitulação de 1983. Têm conhecimento e experiência, de facto. A França ajuda a que todos fiquem trancados num arranjo, que não é só cambial, e que ajuda na dominação económica, e logo política, alemã.

7. Os termos fixados ainda antes da vitória do Syriza – saída ou capitulação – são os que sobrevivem e também foram reafirmados por um documento apresentado pela Plataforma de Esquerda do Syriza na semana passada. Não se desiste.

8. O método de análise que deverá ser seguido consiste em comparar o que o governo grego aceitou para os próximos anos com o que estava escrito no programa de Salónica. A verdade é que este exercício só nos levará à conclusão de que nesse programa havia uma contradicção insanável. Ela foi por agora resolvida pela pressão estrutural.

9. À esquerda portuguesa que se mantiver na contradicção de Salónica terá de ser dito: o vosso programa não vale o papel.

10. O europeísmo, entendido como a prioridade à reforma institucional na escala da moeda, morreu hoje à esquerda da antiga social-democracia.

11. A saída do Euro faz hoje parte do adquirido estratégico da esquerda portuguesa que quiser aprender com as lições gregas.

12. Não há atalhos políticos. Só um trabalho de construção programática e de acumulação de forças poderá fazer a prazo a diferença no contexto português.

Resta declararmo-nos dissidentes desta Europa punitiva



«O projecto europeu foi usurpado por políticos autoritários, desprovidos de visão e de capacidades democráticas, incapazes de receber, compreender e valorizar o passado de paz e de evolução positiva que outros construíram ao longo das últimas décadas. Esta Europa da paz, de aposta na coesão e de um desenvolvimento que as cinzas da Segunda Guerra não deixariam adivinhar, esta Europa está hoje desfeita, violentamente amesquinhada por instituições sem cultura nem projecto, apenas detentoras de poderes que inventaram para si mesmas e que se auto-atribuíram de maneira ilegítima e insensata.
Nunca, tenho esta convicção, nenhuma realidade institucional se auto-desfez tão desabridamente como se está hoje a desfazer esta União Europeia, tomada por usurpadores que a controlam. De tal forma assim é que me parece que não nos restam senão dois caminhos, a todos os que confiamos na democracia, no bem-estar e na paz na Europa. A todos os que confiamos na equidade entre os povos e numa vida cosmopolita e capaz. Resta-nos declararmo-nos dissidentes desta Europa punitiva e resta-nos proclamarmos a ambição de abrir novos caminhos, que reconstruam as nossas vidas. Melhor, que reconstruam as possibilidades de vida dos nossos filhos, usando para isso os instrumentos de sempre: a dignidade, o respeito pelo trabalho, o valor da democracia, a acção pública em nome dos povos.
Eu declaro-me dissidente desta Europa, dos seus instrumentos de violência e da sua incapacidade de agir em nome do bem comum. Eu declaro-me dissidente desta Europa que quer aniquilar povos, mas serve diligentemente os capitais financeiros que comandam, os sistemas bancários que a governam e os mercados que endeusou, ao mesmo tempo que esqueceu os cidadãos e a cidadania. Eu declaro-me dissidente deste mundo de instituições incapazes, e declaro que a minha ambição europeia tem hoje a voz da Grécia.»

Da intervenção de José Reis, a ver na íntegra, na sessão pública «A crise europeia à luz da Grécia», realizada no Fórum Lisboa no passado dia 2 de Julho. As dúvidas que restassem, sobre a natureza dos poderes que hoje comandam a Europa - e as estruturas que os materializam - ficaram ontem, 12 de Julho de 2015, completamente desfeitas.

O falhanço geral de uma estratégia pateta


Em Abril de 2013, o governo de Passos Coelho apresentou a sua estratégia para o crescimento, emprego e fomento industrial 2013-2020 (aqui e aqui).

Foi a única forma de o Governo poder ter duas caras: fomentar o crescimento enquanto respeitava as regras da austeridade. Era a nova versão da quadratura do círculo, depois da famigerada TSU ter sido chumbada pela 2ª vez.

Hoje, dois anos passados sobre esse documento, torna-se visível o falhanço. E um duplo falhanço, já que as melhorias visíveis em 2015, são o fruto de um modelo que nunca Passos Coelho, Álvaro Santos Pereira ou Vítor Gaspar defenderam.

Provas? Veja-se os objectivos e os resultados. E não se está a falar de um Memorando "mal desenhado". Pelo contrário, tudo se passa já após a 7ª avaliação, em que ficou claro o falhanço do Memorando inicial.

A ideia era então o Consumo Privado crescer menos de 1% ao ano até 2016. O Consumo Público deveria nunca crescer e ir sempre de quebra em quebra – de menos 4,7% em 2012 até -2% em 2017. O investimento, esse, deveria subir logo 1,2% em 2013 e nunca pararia sua ascenção. Quando ao comércio externo, as exportações registariam uma subida anual ao redor dos 5%, enquanto as importações estariam contidas entre 2,5% em 2014 e 3,7% em 2015.