sábado, 29 de setembro de 2012

Seis passos para a procura


1. Um cada vez mais barricado e desorientado Passos Coelho afirmou anteontem que muitos empresários não passam de uns cobardolas, por supostamente temerem represálias de trabalhadores, furiosos com o facto de o governo ter tentado efectuar uma redistribuição do trabalho para o capital por via da TSU. Incrível. De facto, para que é que anda o governo, com a preciosa ajuda da troika, a reforçar todos os mecanismos disciplinares, fazendo com que o medo seja só de quem trabalha por um salário, idealmente cada vez mais baixo, – desemprego de massas, cortes no Estado social, alterações regressivas da legislação laboral?

2. Muitos empresários sabem por experiência, não precisam de conhecer a economia da reciprocidade aplicada à relação laboral, que o corte do salário a um trabalhador é péssima política, passível de ser respondida com menores níveis de empenho, sobretudo ali onde estes são difíceis de controlar, de monitorizar, onde a acção colectiva empenhada conta para a produtividade. A relação laboral, por muito desigual que seja, deixa sempre alguma discricionariedade a quem trabalha para reciprocar numa moeda que se assemelha: cortes de salários desmotivam e podem levar a menores níveis de empenho. Há elementos comportamentais na célebre resistência dos salários à baixa. Os salários muitas vezes baixam através de despedimentos que começam o jogo de novo com pontos de partida salariais mais desfavoráveis. É claro que isto acarreta outros problemas. É claro que há todo um labor regressivo dos poderes públicos, com o sucesso conhecido: rendimento dos portugueses caiu cem euros por mês em dois anos. Uns ingratos, estes empresários. Uns ignorantes, diz hoje Borges, com uma arrogância endinheirada só proporcional à sua brutal ignorância.

3. Muitos empresários criticaram a medida da TSU porque sabem, e respondem ao INE maciçamente nesse sentido, que o que tolhe o investimento é a falta de confiança na capacidade das mercadorias em dar o tal “salto mortal” de que falava Marx, em serem vendidas, um detalhe importante na dinâmica de acumulação. Os salários são bem mais do que um custo, são uma fonte de procura.

4. Para lá da injustiça social, do atrofiamento das capacidades individuais e colectivas, sobretudo de quem mais beneficia com os serviços públicos, como sublinha Manuel Esteves, que ainda são uma das melhores formas de fazer redistribuição, os cortes na despesa pública são a mais eficaz forma de garantir a compressão da procura e por isso devem ser evitados, sobretudo onde se concentra a esmagadora maioria da despesa: salários, provisão pública de bens sociais e investimentos que equipam e qualificam. A mensagem aqui é sempre a mesma, poste a poste: o momento para corrigir défices é a fase ascendente do ciclo que com esta austeridade chegará muitíssimo mais tarde.

5. Os cortes, ao contrário do mito, têm sido “brutais” desde 2010, para usar a expressão de Fernando Ulrich, um banqueiro do regime muito orgulhoso dos mais de 13 mil milhões de euros de cortes que contribuíram para a recessão: dos cortes nos salários da função pública à fragilização do SNS e da escola pública, passando pelos cortes nas prestações sociais ou pela compressão do investimento público, há mesmo muita selvajaria na austeridade realmente existente, para lá do mito das gorduras.

6. Num dos países mais desiguais da Europa, nunca é inoportuno acabar com o Estado predador, com benefícios fiscais à medida ou com parcerias ruinosas, e fazer uma reforma estrutural, como se diz agora, no campo fiscal: aumentar a progressividade do IRS, com taxas marginais mais elevadas, carregando sobre os rendimentos mais altos, os que menos consomem e também não investem, englobando rendimentos de capital em pé de igualdade com os do trabalho para efeitos de cálculo do imposto a pagar, taxando bem mais a riqueza, as transacções financeiras os prémios milionários de gestores bem protegidos, reintroduzindo um imposto bem desenhado sobre a herança, uma das formas mais injustificadas de transmissão intergeracional de grandes vantagens, etc. Há muito para fazer na frente fiscal, transferindo mais para quem também dá mais garantias no campo da procura, seja a socializada, seja a das classes populares. A crise é de procura, de procura e de procura. Parece que há muitos empresários que no fundo sabem isso...

sexta-feira, 28 de setembro de 2012

E para quem estiver em Coimbra...


Amanhã é Dia de Luta e Reivindicação de 1% do Orçamento de Estado para a Cultura, com um vastíssimo programa de actividades.

Sim, somaremos lutas


A grande vitória do povo português no passado dia 15, quando saíram à rua entre quinhentas mil e um milhão de pessoas para repudiar as políticas que têm sido seguidas, não foi abalar a coesão da coligação no poder nem forçar o recuo do governo relativamente à TSU. A grande vitória foi a redescoberta da sua dignidade e de si próprio enquanto sujeito histórico. A luta, resistência e manifestação populares valem sempre a pena: além das eventuais conquistas imediatas, são elas que reforçam a subjectividade colectiva e preparam o terreno para as conquistas subsequentes.

A próxima etapa é já amanhã. Todos e todas somos chamados ao Terreiro do Paço para, como escreveu o Nuno Ramos de Almeida, somarmos lutas: mostrarmos às troikas internas e externas a dimensão da resistência com que se confrontam, construirmos um amplo bloco social que imponha uma inversão de rumo e, pelo caminho, mostrarmos que a força popular é maior que todos os sectarismos.

Recapitulando


Do meu artigo de hoje no Diário Económico:

Os problemas principais da economia portuguesa são a desigualdade, a pertença a uma zona monetária disfuncional, o padrão de especialização produtiva, o desemprego, os desequilíbrios externos e o endividamento privado e público. A ordem em que enuncio estes fatores não é arbitrária: os primeiros são causas profundas, os últimos são sobretudo consequências. A estratégia atual tem alegadamente por objetivo corrigir o último destes fatores, mas, ao ignorar ou agravar os restantes, revela-se necessariamente contraproducente e nefasta.

Qual é então a alternativa? É necessário, em primeiro lugar, cessar a espiral do endividamento e libertar recursos para o relançamento do emprego. Chegados a este ponto, isso implica renegociar o memorando de entendimento com a 'troika' e declarar uma moratória ao serviço da dívida, mas esses são apenas os primeiros passos indispensáveis. Urge atuar mais profundamente, com uma estratégia que dê prioridade ao emprego e penalize os setores e atividades rentistas. É necessário tornar a nossa fiscalidade mais simples, mais justa e mais progressiva, a fim de reduzir a desigualdade e, por essa via, estimular o mercado interno. É também necessário que o Estado oriente ativamente a concessão de crédito no sentido da criação de emprego e do estímulo ao investimento produtivo.

Ler o resto aqui


quinta-feira, 27 de setembro de 2012

O tempo urge e não espera pelas esquerdas



O BCE pretende fazer baixar as taxas de juro da Espanha comprando obrigações de curto prazo em enormes quantidades, sem limite. Ao declará-lo solenemente, espera intimidar os especuladores e, no final de contas, fazê-las baixar sem ter de intervir. Gestão de expectativas. Porém, só o fará se a Espanha fizer um pedido de resgate em que aceite aplicar a política depressiva, pró-cíclica, a que hoje se dá o nome de "austeridade". Como há dias disse Stiglitz, o BCE dá o remédio salvador com uma mão ao mesmo tempo que usa a outra para impor o veneno. Pouco importa se foi, ou não, para agradar aos alemães. É a loucura institucionalizada na UE.

Temos assim Rajoy obrigado a praticar políticas depressivas em doses cada vez mais penalizadoras, sempre iníquas, que aprofundam dramaticamente a crise financeira, económica e social. Mesmo sem Memorando e sem tutela da troika, Espanha já mergulhou na espiral depressiva da Grécia e de Portugal. Um pouco mais atrás, a Itália vai pelo mesmo caminho.

Para todos os efeitos, a agenda para o crescimento (lembram-se de Hollande?) está metida na gaveta. Algo inevitável porque numa política económica destinada a tirar a economia da depressão não há lugar para reduções da despesa e/ou aumento de impostos. É justamente o contrário que o Estado tem de fazer durante algum tempo, como bem viu Keynes. O défice tem de crescer para contrabalançar a retracção do sector privado. Acabar com as rendas dos parasitas do Estado, sim. Outra coisa é racionalizar a administração pública, uma tarefa que tem de ficar para melhores dias. Como começa agora a ficar claro para alguns comentadores ignorantes das interacções entre oferta e procura agregadas, nenhum destes países pode sair do inferno sem uma ruptura com a ordem instituída na UE. No mínimo, as esquerdas têm de dizer aos portugueses isto: não é possível sair da crise sem entrar em conflito com os credores.

Por muitas reuniões que façam em Roma, com ou sem Passos Coelho, os países da periferia da eurozona estão num beco sem saída dentro do actual quadro institucional. Quando se propôs renegociar o memorando grego, Samaras esbarrou no desprezo da Alemanha. Há dias, o ministro das finanças da alemão avisou que esperava a continuidade da política de Monti depois das eleições em Itália. Passos Coelho afinal não encontrou na 5ª avaliação a benevolência que Schaeuble tinha segredado aos ouvidos de Gaspar. Até dia 8 de Outubro a UE quer saber qual é a política depressiva a incorporar no orçamento para 2013.

 
Nas periferias do sul da eurozona, as instituições formais da democracia não mostram estar em condições de encontrar uma saída para o desastre. Anseia-se por uma alternativa credível, liderada por gente limpa, liberta de dogmas, capaz de mobilizar o melhor de cada país. De onde pode vir tal coisa? Em Portugal, há quem continue à espera da convergência das esquerdas (PCP, BE, PS) para encontrar quem lidere a mudança. Esta é a última oportunidade para esse projecto. Outra hipótese, menos ancorada no passado, seria a criação de um novo partido com capacidade para forçar a mudança na paisagem partidária. Uma coisa é certa: a crise deu um salto qualitativo e tomou conta do terreno da política, na rua e nas instituições da democracia. O tempo urge e não espera pelas esquerdas.

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Da magia da fé ao desprezo pelo intangível

«O pensamento mágico chegou ao Ministério das Finanças e Vítor Gaspar, na última comunicação efectuada ao país, voltou a demonstrar a extensão do problema. Apesar da linguagem e pose tecnocráticas, o ministro das Finanças - tal como, aliás, o primeiro-ministro - mostrou que o projecto político deste Governo e da ‘intelligentsia' que o rodeia é relativamente simples: desejar com muita força que algo ocorra e, se as coisas não correren como desejado... bom, desejar com força ainda maior e esperar que o céu, i.e. o conjunto de variáveis macro-económicas que norteia a pseudo-política fiscal deste governo troikista, não nos caia na cabeça. (...) No mundo real, aquele em que medidas draconianas são impostas a mando de um clube de credores e sujeitam um povo inteiro à destruição do seu modo de vida, com o beneplácito de elites políticas cartelizadas e hipnotizadas pela alquimia monetarista, esse país está em queda livre e urge reinventar a política, desmontando o pensamento mágico de auto-proclamados feiticeiros como Vítor Gaspar ou os representantes da 'troika'»

Luís Pais Bernardo, em «Pensamento mágico nas Finanças»

«Fechado no seu gabinete ministerial, concentrado no corte à despesa pública, transformou os portugueses em algarismos, numa contabilidade que soma, subtrai e divide desigualmente. No seu mundo de ‘experts' circulam teorias, experiências e estudos que nunca ninguém viu e poucos poderão entender. Aliás, o estudo, que fez o ministro optar pela decisão relativa à Taxa Social Única, é uma incógnita para jornalistas, investigadores e observadores. A medida que desagradou a todos os sectores da sociedade, sendo o mais equitativa possível na contestação e apenas nisso e gerando uma crise política, é fundada em alicerces técnicos até agora não publicados, algo estranho para um ‘expert'»

Cátia Miriam Costa, em «'Expert?'»

«Algo mais está em risco neste momento, com potencial impacto na própria actividade económica. A economia portuguesa tem evoluído para assentar cada vez mais em serviços e quando se fala em criatividade, inovação, serviços, está-se a falar de actividades económicas com uma característica particular – o seu sucesso depende do empenho que se puser nessas actividades. Não é possível verificar se há esforço de criatividade no desenho de novos produtos. É quase impossível verificar se em cada atendimento a um turista há um sorriso e uma forma de tratar que o faça querer voltar. Verificar a produção robotizada, ou mesmo a produção manual, é fácil. Verificar o intangível não é. E a perda de valor associada pode ser relevante. O problema central, o de aumento da produtividade, continua fora das discussões, e deverá reganhar espaço.»

Pedro Pita Barros, em «Manif e Economia»

A (má) moeda do pensamento económico dominante que nos atrofia tem duas faces. E ambas se ligam por um elemento comum: o desligamento à realidade. Seja pela via do entendimento da economia como um modelo mecânico imaginário, seja pela via do despojamento – na análise dos processos económicos – de tudo o que não é tangível e ultrapassa, por isso, as fronteiras de uma racionalidade simplista e limitada. Uma parte muito considerável do desastre em que estamos mergulhados tem aqui as suas raízes.

The Beatles: Come together


Já só faltam dez dias para o Congresso Democrático das Alternativas, que decorrerá na Aula Magna da Universidade de Lisboa no próximo dia 5 de Outubro. Subscrevam a convocatória e inscrevam-se aqui. Não pagam nada e têm direito à palavra e ao voto.

terça-feira, 25 de setembro de 2012

Derrotas

A força do povo “intimidou”, para usar expressão de um articulista descontente do Financial Times, o governo, impondo-lhe uma derrota na batalha ideológica da TSU. Teremos mais demonstrações de força no dia 29. A soberania democrática e a força do trabalho organizado ainda se fazem sentir em tempos financeiros, mas a guerra da austeridade está muito longe de estar ganha. Noto entretanto que são cada vez mais as vozes, como a de Pedro Santos Guerreiro, que mudam, e fazem bem, de posição sobre o assunto mais importante da economia política e da política económica actuais. Um assunto que de resto nunca deixou de ser sobre valores, sobre ideologia, e sobre factos, que os dois estão sempre entrelaçados. O projecto ideológico da economia política da austeridade é cada vez mais claro e os seus mecanismos reais também: trata-se de destruir o Estado social e a força do trabalho organizado através do desemprego de massas permanente gerado pela austeridade recessiva, forçando assim uma redistribuição de cima para baixo, quer dos trabalhadores da base para a minoria do topo, quer do trabalho para certas, friso o certas, fracções do capital. Friso porque a aliança para derrotar a austeridade terá de incluir as outras fracções. O projecto da economia política da austeridade não foi abandonado, se bem que uma das suas expressões de política mais extremas e transparentes tenha sido derrotada. É que as estruturas de constrangimento externas criadas por este euro, com pesados efeitos internos, permanecem. Mas sobre isto deixo-vos o princípio e o fim do artigo de João Pinto e Castro, aconselhando vivamente o que está no meio, até porque refere Hayek, um dos economistas políticos que vale a pena ler no campo neoliberal:

“Concordo com Vítor Bento quando ele afirma que, embora os portugueses declarem querer o euro, não é seguro que queiram fazer o que é preciso para que possamos permanecer nele. Mas acrescentarei que, se de facto entendessem plenamente as implicações dessa escolha, prontamente reveriam a sua opinião (…) O que nos espera no final desta crise financeira? A salvífica união fiscal que agora se anuncia apenas acentua a deriva plutocrática que estamos a viver. Esta desgraça não é defeito, é feitio: temo-nos até agora limitado a seguir mansamente o guião escrito por anónima mão invisível. Urge decifrá-lo e rejeitá-lo."

Adenda: Isabel Jonet, o Estado e a caridade

Vários leitores, a quem agradeço, chamaram-me à atenção para um facto de que não me apercebi quando encontrei, há uns dias, o respectivo video no facebook: a entrevista de Isabel Jonet ao Diário de Notícias e TSF (citada neste post), foi realizada em Junho do ano passado. Isto é, num momento em que a opinião pública estava a ser intoxicada com as patranhas do «Estado gordo» e do «viver acima das possibilidades».

A situação económica e social do país não assumia portanto, nessa altura, o estado de colapso em que hoje se encontra. Nem a percepção generalizada sobre a colossal fraude que constitui a opção austeritária correspondia, então, à que hoje se tem. O que não significa, contudo, que as declarações da presidente do Banco Alimentar resultassem apenas do «espírito do tempo»:

1. Como lembra a Maria João Pires, em 2007 Isabel Jonet afirmou que «caridade vale mais que a solidariedade (...), caridade é amor, solidariedade e serviço». E, mais recentemente, a economista do Banco Alimentar deu a sua benção às propostas de alteração à TSU, considerando-as «um mal menor». Ou seja, tudo indica estarmos perante um padrão consolidado de «pensamento social» (como bem assinala o Sérgio Lavos): Isabel Jonet repetiria hoje, muito provavelmente, as palavras que disse há um ano atrás.

2. As preces da presidente do Banco Alimentar (redução «ao máximo» do RSI e do subsídio de desemprego - para obrigar a malandragem a trabalhar e fazer com que o Estado não se meta «em coisas que não deve»), foram contudo atendidas pelo governo. As tendências que os gráficos aqui ao lado evidenciam (dados do quarto trimestre de cada ano) aprofundaram-se em 2012: o número de beneficiários do RSI e a percentagem de desempregados com acesso a subsídio foram reduzidos à força (e à bruta). Mas, curiosamente, a tese de Isabel Jonet não vingou: o desemprego continuou a galopar e, a bem da «nobre causa», o número de pessoas a beneficiar da sua «obra» também não cessou de aumentar (o «negócio» vai, de facto, de vento-em-popa).

3. Não é demais repeti-lo: o Banco Alimentar contribui para minorar o sofrimento de muitas pessoas. E permite, tal como outras iniciativas semelhantes, que muitos cidadãos concretizem a sua vontade de ajudar a suavizar a angústia por que passa um número cada vez maior de famílias. Outra coisa, bem diferente, é pretender que uma espécie de «indústria da caridade» faça aquilo que, por natureza, não lhe cabe (nem pode caber): concretizar direitos, assegurar universalmente o acesso a mecanismos de protecção. Isto é, pretender «meter-se em coisas que não deve»: no quadro de responsabilidades e deveres sociais do Estado, inerentes a uma sociedade democrática e civilizada (não deixem de ler este post do Porfírio Silva, em particular o segundo ponto, tão clarividente como certeiro).

4. É que, em contrário, vale então a pena recordar que muitas das instituições a que o Banco Alimentar entrega os bens, para serem posteriormente distribuídos, se caracterizam pela discricionariedade e pela casuística: há resposta se houver resposta (e para quem se entende que deva haver resposta). Os critérios de avaliação assentam com demasiada frequência em juízos morais, emoções, estados de espírito, graus de empatia, preferências subjectivas ou - nos casos mais graves - em miseráveis avaliações de contrapartidas ou de conduta, fundadas num qualquer código de interesses ou tábua de preceitos «éticos» ou religiosos. Ao que acresce, por fim, a ausência de uma lógica de cobertura territorial, de acesso, bem como a permeabilidade a interesses particulares ou favorecimentos. E ainda - importa sublinhá-lo - a opacidade: ao contrário dos serviços públicos, estas instituições não são facilmente escrutináveis (nem têm, nesta matéria, que o ser).

domingo, 23 de setembro de 2012

Diagnóstico

Miguel Macedo, ministro de um governo apostado na austeridade assimétrica permanente, que eleva sem cessar o desemprego e assegura a quebra sem fim de rendimentos, sem os quais parece que não há poupança, ministro num país onde quem ainda tem emprego é compelido a trabalhar cada vez mais horas, afirmou hoje que Portugal “é um país com muitas cigarras e poucas formigas”. Uma declaração em linha com as saídas das zonas de conforto, os piegas ou o desemprego como oportunidade para empreender. A violência ideológica acompanha sempre a violência das políticas. Ana Matos Pires diagnosticou uma “total ausência de inteligência emocional e uma inacapacidade empática preocupantes”. Um diagnóstico extensível a todo o governo e à troika.

Democracia e alternativas: porque o «inevitável» é inviável


sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Soberania democrática

[A] troika estava a precisar de sentir que há quem defenda a capacidade negocial externa do Estado: a população na rua de norte a sul.

José Medeiros Ferreira

Invejável capacidade de síntese. O problema principal é que a troika também sente que há quem não defenda, e até ataque, a capacidade negocial externa do Estado: o governo de Gaspar. É que o seu poder interno depende precisamente de poderes externos, do governo alemão, de instituições europeias e de fracções do capital, como o apoio descarado dado pelo ministro das finanças alemão aliás confirma. Também por isso é muito importante recordar hoje a Cavaco que a soberania democrática ainda é popular.

Seminário «Habitação e Urbanismo»

«Num momento em que o Estado Social se encontra debaixo de uma grande pressão, em que a sua inviabilidade parece ser consensual e em que, aparentemente, a única possibilidade de o preservar passa por reduzi-lo à sua expressão mínima e residual, pensamos que a necessidade de (re)pensar o Estado Social implica necessariamente que possamos questionar de forma crítica as relações entre este, a habitação e o urbanismo, com vista à identificação das suas fragilidades, insuficiências e contradições para que, a partir delas, se possam projectar novas possibilidades de intervenção pública rumo a cidades mais sustentáveis, menos desiguais e mais socialmente criativas.»

Organizado pelo IGOT e pelo SOCIUS, realiza-se no próximo sábado, 22 de Setembro, no Auditório Orlando Ribeiro (IGOT-UTL), entre as 9.00h e as 18.00h, o primeiro Seminário Preparatório do Fórum Cidadania pelo Estado Social (que terá lugar a 10 de Novembro).

Programa:
09.30h- «Enquadramento: desafios e inquietações» (Teresa Barata Salgueiro, José Romano, André Carmo)
10.00h- «Direito à Habitação» (Nuno Serra, Helena Roseta, Rita Silva)
14.30h- «Urbanismo e cidades de hoje» (Nuno Portas, Paulo Morais, Pedro Bingre, João Ferrão)
17.30h- «Encerramento: ideias e pistas para um futuro diferente» (Jorge Malheiros, Rita Raposo).

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

A alternativa é o Banco de Portugal



Com a economia em recessão grave, causada pela contracção da procura interna decorrente da austeridade, o governo “bom aluno” afinal não cumpriu o objectivo do défice para 2011, está a preparar austeridade adicional para tentar cumprir o de 2012 (aliviado pela troika para 5%) e não sabe o que fazer com o Orçamento de 2013, agora encurralado pelo repúdio nacional e por uma sentença do Tribunal Constitucional (não é só na Alemanha!).

Os portugueses já perceberam que este caminho não tem saída e levará ao desastre. Fartos do teatro na política, desiludidos com os partidos bem vistos em Bruxelas, talvez possam começar a fazer o luto do euro e abrir-se à ideia de recuperar a soberania monetária e, com ela, o crescimento e o emprego. Perguntará o leitor, saindo do euro, como poderia o Estado pagar no imediato salários e pensões? A resposta é simples, conhecida há muito tempo e funciona em todo o mundo desenvolvido, excepto na zona euro. A alternativa à troika e aos mercados financeiros é o Banco de Portugal.

(Excerto do meu artigo no jornal i)

Caiu-lhe a máscara, dra. Isabel Jonet?

«As pessoas passaram a achar que têm direito a todas as prestações sociais e dão-no como adquirido. E portanto muitas vezes - isso verificou-se nos últimos anos - preferem até ir para o subsídio de desemprego do que ter um emprego, ainda que ele seja menos bem pago. Porque sabem que vão ter essa prestação no final do mês: ou o rendimento social de inserção ou o subsídio de desemprego. Ora, isso veio trazer alguma perversidade neste tipo de fórmulas, que são fórmulas de emergência e que deviam ser reduzidas ao máximo. Mas sobretudo para fazer com que este montante que é afectado a estas prestações sociais não atingisse níveis incomportáveis e insustentáveis para o Estado. (...) [o Estado] mete-se demais em coisas em que não deve». (da entrevista da TSF e do Diário de Notícias a Isabel Jonet, presidente do Banco Alimentar contra a Fome).

Num momento em que há cada vez mais famílias a viver em situação dramática; em que a economia colapsa e o desemprego dispara; em que as iniquidades se aprofundam (num país que é o terceiro mais desigual da OCDE); e em que salários e prestações sociais (já de si dos mais baixos na Europa) sofrem cortes brutais, Isabel Jonet decide juntar-se à miséria moral e ao populismo demagógico que grassa em certos meios conservadores e que marcará, de forma inapagável, a governação da actual maioria PSD/PP.

O Banco Alimentar é uma instituição que, de um modo geral, os portugueses consideram. Muitas famílias beneficiam dos bens distribuídos, tornando possível minorar o sofrimento, a angústia e a falta de horizonte em que um número cada vez maior de pessoas se encontra. Dir-se-ia até que o Banco Alimentar conhece, como poucos, os contornos mais precisos que a carência económica assume em Portugal. E é por isso impensável que a presidente do Banco Alimentar desconheça que a taxa de risco de pobreza seria de 43% no nosso país, caso as transferências sociais não a restringissem a 18% (isto é, a menos de metade). Ou seja, se o Estado não «se metesse demais em coisas que não deve» - como defende Isabel Jonet - cerca de 4 em cada 10 portugueses encontravam-se em risco de pobreza (e não 2 em cada 10, como as estatísticas demonstram).

Não se tratando portanto de ignorância em relação à profunda crise social e económica que o país atravessa, nem em relação aos traços estruturais da pobreza em Portugal, as declarações da presidente do Banco Alimentar só podem ser interpretadas de duas formas: ou Isabel Jonet decidiu surfar, de forma obscena e repugnante, a onda de populismo e miséria moral que se instalou; ou a economista que preside ao Banco Alimentar está apenas a tratar da sua vidinha e dos seus negócios. Isto é, a mostrar sinais de interesse em contratualizar com o Estado uma qualquer parceria público-privada no «sector» da pobreza (que se encontra em vertiginosa expansão), criando simultaneamente condições que favoreçam (ainda mais) o aumento da «procura» (pela redução, «ao máximo», das tais «fórmulas de emergência»: RSI e Subsídio de Desemprego). E não é de excluir, obviamente, que estas duas interpretações se complementem.

Nota: Na medida em que a entrevista aqui citada remonta a Junho do ano passado, convido-vos a ler uma adenda a este post.

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Sem relativismo

O que têm em comum Vítor Bento, Pedro Ferraz da Costa e, sim, é verdade, Vital Moreira em modo relativista selectivo? Segundo o Negócios, fazem parte da selecta minoria que apoia a redistribuição neoliberal mais descarada, usando a engenheria fiscal da TSU, do salário para certas fracções do capital. Tudo em nome de uma narrativa equivocada sobre o problema económico português como problema de custos laborais excessivos. Esqueçam o que dizem as empresas - é a procura, comprimida por sucessivas rondas de austeridade -, esqueçam o que diz a investigação sobre o impacto negativo das mexidas regressivas na TSU no emprego, mesmo que está até possa vir a pecar por defeito nas suas estimativas ao assumir que o futuro é uma continuação estatística do passado, como sublinha João Galamba. Num contexto depressivo, de interacção preversa entre deflação salarial e insolvência de cada vez mais agregados familiares e de empresas, de compressão sem fim da procura, esta redistribuição tem todas as condições para ser um desastre inaudito, colocando Portugal em linha com ajustamentos violentos que fazem suspirar conselheiros de Cavaco. De resto, Vítor Bento, o que disse um dia que não via limites para os sacrifícios, acha que os portugueses querem ficar no euro, mas não parecem dispostos a fazer o que se exige, os tais sacrifícios, sempre selectivos, sem fim. Serão uns mandriões, sem dedicação à causa de uma moeda disfuncional, estes portugueses? Espero que sim. Espero que muitos, cada vez mais, recusem a destruição do Estado social, recusem que a uma década perdida se siga outra de perdição, recusem uma taxa de desemprego que ultrapassa os 16% e que não parará de crescer no contexto desta política económica. Entre esta ordem monetária e financeira e uma sociedade democrática decente não pode haver relativismo.

Congresso Democrático das Alternativas: Debates Temáticos


Nos próximos dias 20, 21, 22 e 23 de Setembro decorrerão, em quatro cidades do país, os debates temáticos do Congresso Democrático das Alternativas, que se realizará a 5 de Outubro na Aula Magna, em Lisboa. Estão todos convidados.

«EUROPA, CRISE E ALTERNATIVAS»
(PORTO, Quinta-feira, 20 de Setembro, às 21.30h)
Local: Escola Artística e Profissional ÁRVORE, Rua Barbosa de Castro, 51 (junto ao Palácio da Justiça).
Oradores: Alfredo Barroso, Carlos Pimenta, José Manuel Pureza e Manuel Carvalho da Silva (moderação de Manuela Mendonça).

(BRAGA, Sexta-feira, 21 de Setembro, às 17.00h)
Local: Auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, Rua de S. Paulo, 1.
Oradores: Almerindo Afonso, Conceição Nogueira, Fátima Alves, José Soeiro, Nuno Serra e Pedro Rodrigues (moderação de Maria José Casa-Nova).

«OS DESAFIOS DA DENÚNCIA DO MEMORANDO»
(LISBOA, Sábado, 22 de Setembro, às 15.00h)
Local: Teatro da Barraca (sala 2), Largo de Santos, 2.
Oradores: João Ferreira do Amaral, João Rodrigues, Manuel Carvalho da Silva, Pedro Nuno Santos e Ricardo Cabral.

(COIMBRA, Domingo, 23 de Setembro, às 15.00h)
Local: Galeria de Santa Clara, Rua António Augusto Gonçalves, 67.
Oradores: Ana Santos, Gonçalo Avelãs Nunes, Lina Coelho, Jorge Leite, José Reis, Sérgio Manso Pinheiro.

terça-feira, 18 de setembro de 2012

O bom aluno morreu


1. Quando o The Washington Post colocou a hipótese de Portugal poder estar perante um «ponto de inflexão» (capaz de transformar a resignação modorrenta de «uma nação de cinto apertado» numa «explosão de raiva»), as ruas e as praças ainda não tinham recebido o mar de gente que nelas transbordou. A hipótese avançada pelo periódico baseava-se apenas nos primeiros impactos, junto da opinião pública, causados pela sequência de episódios que marcariam a implosão da maioria PSD/PP;

2. Esta sequência de episódios (a comunicação do primeiro-ministro ao país; a mensagem suicida do «Pedro» aos «amigos» do facebook; a conferência de imprensa de Vítor Gaspar; e a entrevista de Passos Coelho à RTP) concentraram internamente todas as atenções, concedendo particular e justificada relevância à discussão em torno da Taxa Social Única (TSU);

3. De facto, o imperdível (e raro) espectáculo de um governo a imolar-se a si próprio e as convulsões geradas (nos mais insuspeitos quadrantes) pela questão da TSU, contribuiriam para dissimular o que seria essencial reter: o «bom aluno» falhara e falhara de uma forma colossal. Não porque não tivesse aplicado sobre si mesmo (com todo o zelo e excesso de zelo) a terapia que lhe fora imposta, mas justamente porque essa terapia se revelou profundamente errada e por isso os seus efeitos devastadores se manifestaram em maior escala;

4. Num laboratório, quando os resultados - obtidos através de um ratinho que seguiu obedientemente todas as instruções - contradizem uma hipótese, a terapia (e os seus mentores e executores) é posta em causa. Mas não estamos num laboratório convencional: estamos numa Europa dominada por um pensamento económico obsoleto, criminoso e politicamente irresponsável. Se o ratinho em que se depositavam todas as esperanças «falhou», assobia-se para o ar e começa-se a tratá-lo como se tratam os ratinhos desobedientes. Para a troika, o bom aluno morreu. Para nós, a Grécia começa agora a sentir-se mais na pele.

domingo, 16 de setembro de 2012

Dias iniciais?


Segundo a polícia, participaram vinte mil pessoas na manifestação em Coimbra. Centenas de milhares – oitocentas mil, um milhão? – por esse país fora. Nunca tinha visto tanta gente junta na minha cidade a fazer política. Estas coisas marcam. Acabou-se a narrativa de um país resignado, exemplar na aceitação do destino regressivo definido por elites medíocres e orgulhosas de um Portugal dos pequenitos. Agora resta um governo cada vez mais isolado e a quem só a troika vai valendo. Ontem ganhou força um “contramovimento” de protecção da sociedade, das capacidades individuais e colectivas, com uma maturidade democrática revelada também no realismo dos testemunhos que a comunicação social foi ecoando, na força das razões apresentadas para estar ali e em mais lado nenhum. O contraste com as utopias liberais que escondem sempre as pilhagens reais foi flagrante. Dois mundos. Um movimento com continuidade a 21 de Setembro, para evitar que Cavaco comece a cozinhar uma “evolução na continuidade” governativa, a 29 de Setembro, graças à CGTP, e a 5 de Outubro, com um congresso democrático que aposta nas alternativas. É todo um movimento que terá de levar à queda de Passos, Gaspar e companhia, a novas eleições e à denúncia do memorando por um governo alinhado com os interesses que ontem contaram. Optimismo da vontade.

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Regresso ao futuro


Na Grécia, também conhecida como o país que tem vindo a ser sujeito às receitas das troikas externas e internas há mais um ano que Portugal, a taxa de desemprego total vai em 23,6%, o desemprego entre os jovens 15-24 em 53,9% e o emprego continua a cair aceleradamente (-8,7% em relação ao mesmo trimestre do ano passado). Tudo isto dois anos e meio depois do início do "ajustamento".

Tal como cá, também lá o desfalque e a miséria são apresentados como sacrifícios necessários e inevitáveis que hão-de levar à salvação.

Queremos continuar neste caminho sem fim e sem fundo, ou vamos para a rua no Sábado dizer que basta de devastação?

(dados e gráfico retirados daqui)

Amanhã, 15 de Setembro


Manifestações agendadas, neste momento, em 28 cidades nacionais e estrangeiras. Apareçam, para que quem pretende lançar o país no abismo do retrocesso e do empobrecimento, não possa continuar a dizer: «Queremos a troika, que se lixem as vidas deles!». A imagem é, obviamente, da Gui Castro Felga.

Leituras

«Chegamos, enfim, ao patamar inevitável: toda a gente volta a falar de economia. Mesmo os que fizeram carreira pública vistosa e sonante a declarar que se cortasse, cortasse (...) - mesmo estes, começam a chegar ao essencial. Começam a ter conhecimento que uma economia ferida de morte é um quadro cruel e sem solução: não apenas para os perseguidos, os que vivem do trabalho, mas para todos. Podemos, enfim, substituir os culpados. E encontrar os culpados reais: a troika, o Governo, as medidas insensatas, carentes de um mínimo de sensatez. Os obcecados criaram o seu circo. E ele está a arder.»

José Reis, em «Por favor, deixem-nos respirar!»

«O senhor ministro das Finanças, na realidade que inventou para si, criou um deserto e insiste em chamar-lhe sucesso. Um governante que declara guerra à realidade, como é o seu caso, é um governante perigoso. (...) O senhor ministro das Finanças, no Orçamento de Estado para 2012 fez uma escolha: decidiu ir radicalmente para além da troika. Essa escolha falhou e o senhor ministro, preocupantemente, não tira daí qualquer consequência e ameaça repetir a dose. (...) Um governante tem o dever de aprender com o resultado das suas políticas. A cegueira e o fanatismo da sua receita (...) são preocupantes, senhor ministro. (...) Trata os portugueses como variáveis passíveis de ser ajustadas. (...) Mas mais preocupante (...) é o experimentalismo irresponsável e a selvajaria social que se prepara para fazer com a TSU. (...) Mas o mais grave, senhor ministro (...), é o absurdo de uma política que não vai resultar. O mais absurdo de um sacrifício não é ele existir, senhor ministro das Finanças. É ele não servir para rigorosamente nada, que é o que vai acontecer.»

João Galamba, na fulminante interpelação a Vítor Gaspar, ontem, na Assembleia da República.

«Não há nada mais perigoso do que um primeiro-ministro que não se importa com eleições e que aja em coerência, pois isso permite-lhe fazer tudo, à margem da sociedade, num plano que, seguramente, já contempla o descontentamento generalizado. E como se explica isso? Em primeiro lugar, perante um cenário de necessários ajustamentos de consumo (...), as perspectivas de ganhar um segundo mandato são escassas. Em segundo lugar, quem diz que dois mandatos são melhores do que um, sobretudo se a seguir vier uma tarefa mais bem remunerada e menos desgastante? Em terceiro lugar, se é para defender interesses privados, um mandato pode ser suficiente. A quarta e última razão é mais preocupante. Trata-se do facto de existir, na sociedade portuguesa, uma herança ditatorial que não só não está morta, como pode ser reavivada, embora em outros moldes.»

Pedro Lains, em «A reinvenção da ditadura»

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Fraudes

Os pobres não trabalham porque têm demasiados rendimentos; os ricos não trabalham porque não têm rendimentos suficientes. Expande-se e revitaliza-se a economia dando menos aos pobres e mais aos ricos.

Há trinta anos atrás, o economista político John Kenneth Galbraith resumia, com insuperáveis ironia e poder de síntese, muitas páginas de pensamento neoliberal focado na “oferta” e numa suposta “libertação da economia”. Esta estaria hoje associada a reformas ditas estruturais. São expressões ainda na moda entre os que confundem os interesses dos credores externos com os interesses da maioria dos que aqui vivem. Na realidade, esta “libertação”, como Galbraith nos ensinou, serve sempre para ocultar ideologicamente o que mais não é do que transferência, ajudada pelo Estado que nunca se dispensa em capitalismo, de poder para quem já controla recursos a mais à custa da liberdade de quem tem recursos a menos e vulnerabilidade a mais.

A última aplicação do pensamento redistributivo neoliberal – do trabalho para certas fracções do capital, geralmente as mais predadoras – à economia portuguesa pode ser quantificada e resumida antes das novidades de ontem no quadro abaixo, graças ao economista Eugénio Rosa, mas também pode ser captada através de notícias que correm o risco de passar desapercebidas e que nos informam de recuos expressivos do PSD-CDS perante quem tem poder, neste caso a banca.


O que já não passa desapercebido é o falhanço clamoroso da política económica –“desemprego mais elevado, rendimentos disponíveis mais baixos”, diz a troika no seu comunicado, ao mesmo tempo que garante que está tudo bem. Tem a palavra Medeiros Ferreira sobre o horizonte do défice: ”O Sol continua a rodar à volta da Terra. Postos perante a prova dos factos governo e troika empurram com as barrigas grávidas de enganos as datas sacrossantas que celebraram até ontem. O défice orçamental fica ordenado com o mesmo rigor tecnocrático e o fétiche da exactidão profética de sempre”. Galbraith não escrevia melhor. O défice orçamental é mesmo uma variável endógena e nas mãos desta gente uma fonte de pressão permanente para dar liberdade a alguns à custa da liberdade da maioria.

Entretanto, o jornalista de Luís Rego, a partir de Bruxelas, identifica bem a lógica da actual europeização: “São Bento aprendeu bem a lição europeia de medir a credibilidade pelo sofrimento infligido à população (…) De fora ninguém nos irá socorrer. Bruxelas entrou decididamente no modo de filme ‘gore' - quanto mais sangue, melhor.” A “fraude inocente”, ou nem por isso, que Galbraith denunciou tão bem, está viva em Bruxelas e inscrita neste euro.

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

A quem ainda não decidiu


Nestes dias estamos todos confrontados com uma escolha: deixar esta loucura prosseguir, ou exigir um ponto final. Não pensem que é impossível. Quando um povo exige com determinação a saida de um governo, o governo parte mesmo. Este tem de ir. E isto tem de parar.

Se não sabe onde a paciência em excesso nos pode levar, olhe para a Grécia. Sim, era mesmo verdade, a troica está a exigir na Grécia que se volte à semana de seis dias e que os patrões possam exigir semanas de 78 horas. A reforma, no fim desta canseira, iria para os 67 anos. 
E que tal alugar parcelas do território? É que na Grécia também se fala seriamente de alugar ilhas por 50 anos a promotores imobiliários.
Tudo indica que o povo grego irá decidir que o seu governo tem de sair. Nós devemos fazer o mesmo enquanto pensamos no que deve vir depois. 

Por um prato de lentilhas envenenado

Vítor Gaspar é um economista de folha de excel, fanático e obsessivo. Revela sinais de profundo autismo científico, mas não é burro (António Borges sim, é simplesmente um louco que anda à solta e a quem, loucos ainda mais desvairados, deram poder).

Não há, de facto, nenhuma razão consistente para pensar que Gaspar tenha deixado de ter dúvidas quanto aos míseros efeitos da descida da TSU na criação de emprego, nem quanto aos seus impactos negativos nas finanças públicas. Como o próprio referia há cerca de um ano, «a redução da TSU funciona muito bem no quadro dos modelos que se usam na universidade, mas ainda não foi usada deliberadamente por nenhum país para ganhar competitividade. É algo não testado» (e só é pena, de facto, que Gaspar não sujeite o resto das suas convicções económicas a este teste das diferenças entre os modelos académicos e a economia como ela é).

O que explica então que, decorrido um ano, Gaspar aceite (e até defenda) a descida generalizada da TSU para as empresas? Face às evidências, que o João Rodrigues aqui oportunamente assinalou, só encontro uma resposta: por manifesto servilismo, oportunismo político e por profunda e dolosa irresponsabilidade. Gaspar sabe que fracassou em toda a linha: não só se afastou de forma colossal do objectivo do défice para este ano como estoirou violentamente com a economia do país. Contudo, fanático e obsessivo, jamais o poderia admitir, optando pela fuga em frente.

A descida da TSU constitui portanto, evidentemente, a moeda de troca para tentar camuflar o estrondoso e mais que previsível falhanço. Gaspar precisava do aligeiramento da meta do défice para 2012 (os míseros 0,5% que a troika lhe concedeu), para se poder manter à tona de água. Ou seja, para poder preparar a fuga em frente, através de mais um golpe insane de austeridade, na eterna e infundada esperança de que um dia a mesma funcione. O preço a pagar foi, está bem de ver, a sujeição do país à perigosíssima hipótese científica que a troika quer testar, nas piores condições possíveis, no «bom aluno»: perceber se a redução da TSU favorece, ou não, a competitividade e a criação de emprego.

Na certeira metáfora de João Pinto e Castro, o governo aceitou - através de Gaspar e para tentar salvar a pele - «doar o seu povo à ciência». Por um mísero e fatal prato de lentilhas (que o ministro de Estado e das Finanças sabe, além do mais, estar envenenado).

terça-feira, 11 de setembro de 2012

Um faz-de-conta



Diz o ministro das finanças que a troika aceitou o défice de 5% em 2012, 4,5% em 2013 e 2,5% em 2014.

Acontece que a credibilidade destas metas, e dos cenários macroeconómicos que as sustentam, já se evaporou há muito. Conhecemos estimativas vindas da Assembleia da República, mais independentes, que colocam o défice deste ano nos 7% ou mais.
Tudo o mais constante, isto quer dizer que Vítor Gaspar acredita que pode ir buscar ao capital e aos proprietários de património e bens de luxo a diferença entre a evolução real do défice e o compromisso de 5%.

Hoje, Vítor Gaspar não falou para os portugueses. Deu continuidade ao faz-de-conta que sustenta a sua credibildade externa. Até ao dia em que tudo vai desabar. E esse dia já esteve mais longe. 

Leituras

«A comunicação do primeiro-ministro na rentrée de 2012 brutaliza a lógica económica e a justiça social. A iniciativa dispara sobre alvos vazios mas produz ricochetes sérios. Primeiro, as medidas apresentadas agravarão os problemas que visam resolver. Segundo, as medidas são uma aberração ética. Pela boca de Passos Coelho saiu uma fórmula em que a ineficácia e a inequidade se auto-reforçarão. Trata-se de uma irracionalidade económica e de uma imoralidade social. Utilizar a baixa da TSU como ferramenta para crescimento e exportações numa conjuntura de recessão é algo tão errado do ponto de vista técnico que parece justificar uma averiguação judicial por negligência propositada tal como quando médicos incompetentes são condenados por más práticas que levam à fatalidade do paciente.»
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Sandro Mendonça, em «Disparar à vontade»

«Um terço é para morrer. Não é que tenhamos gosto em matá-los, mas a verdade é que não há alternativa. se não damos cabo deles, acabam por nos arrastar com eles para o fundo. E de facto não os vamos matar-matar, aquilo que se chama matar, como faziam os nazis. Se quiséssemos matá-los mesmo era por aí um clamor que Deus me livre. Há gente muito piegas, que não percebe que as decisões duras são para tomar, custe o que custar, e que, se nos livrarmos de um terço, os outros vão ficar melhor. É por isso que nós não os vamos matar. Eles é que vão morrendo. (...) Com um terço da população exterminada, um terço anestesiado e um terço comprado, o país pode voltar a ser estável e viável. (...) Não vou ficar em Massamá a vida toda. O Ângelo diz que, se continuarmos a portar-nos bem, um dia nós também vamos poder pertencer à élite.»
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José Vítor Malheiros, em «O sonho de Pedro Passos Coelho»

«É o nosso silêncio que permite esta política. O primeiro-ministro apresenta-nos nos fóruns internacionais como gente mansa que aceita com um sorriso nos lábios toda a austeridade a que nos obrigam. Transformámo-nos nas cobaias das políticas neoliberais. Garantem-nos que não há alternativa. É o momento de remediarmos o erro e dizermos: tudo é alternativa a esta política ditada pela troika, porque este rumo apenas conduz ao desastre. Como escrevia um dramaturgo e poeta alemão de que Merkel não deve gostar: “Depois de falarem os dominantes/ Falarão os dominados/ Quem, pois, ousa dizer: nunca/ De quem depende que a opressão prossiga? De nós/ De quem depende que ela acabe? Também de nós/ O que é esmagado que se levante!/ O que está perdido, lute!”»
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Nuno Ramos de Almeida, em «Cale-se, senhor primeiro-ministro»

Momento de ruptura

Na história por escrever dos dias que correm, a comunicação de Passos Coelho ao país na passada sexta-feira marcará, muito provavelmente, o momento-chave da ruptura entre o governo e sectores decisivos da opinião pública que têm ajudado a manter a caminhada para o abismo. Isto é, o ponto em que se quebra a confiança de muitos portugueses que concederam o benefício da dúvida à austeridade ou que acreditaram ser esse o caminho da redenção (ajudados, na sua boa fé, pelos mantras diariamente regurgitados - e dispensados do contraditório - dos economistas que colonizam, em regime de monocultura, os espaços de debate televisivo).

A «carta» enviada aos portugueses pelo primeiro-ministro através do facebook é um dos sinais da percepção dessa ruptura por parte do próprio governo. É um texto imponderado (que não antevê a mais que previsível avalanche de revolta que sobre ele se abateu), abrupto (pois parece ter sido escrito com os pés) e profundamente irreflectido no seu conteúdo (o paternalismo cínico a que Passos Coelho recorre deixa perplexo o mais cândido dos leitores). A somar a isto, sinais claros de que a manifestação do próximo dia 15 poderá agora assumir proporções absolutamente invulgares; a sinalização de «voto contra» no Orçamento de Estado de 2013 pelo PS; e um indigente e desesperado «manual de instruções», editado pelo gabinete de Relvas e distribuído pelos diferentes ministérios, para ajudar as tropas a defender o indefensável.

Tudo indica, portanto, que estamos a entrar em tempos decisivos de mudança. Mais do que nunca, a sociedade portuguesa reclama caminhos alternativos à tragédia austeritária, que não se dispensem de equacionar todos os cenários possíveis, tanto à escala nacional como europeia. Há um espaço de esperança que ficou vazio para todos quantos, intoxicados e iludidos, encararam a austeridade como solução para os nossos problemas. Eles juntam-se agora a quem, desde há muito, vive inquieto com a necessidade de quebrar os impasses que tolhem o país e o futuro. O Congresso Democrático das Alternativas ganhou por isso, desde a passada sexta-feira, um redobrado sentido e exigência.

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

A troika ajuda, a troika é amiga


Perguntas

Será que o governo sabe que a desvalorização fiscal não resulta, nem sequer no mundo de fantasia em que habitam os economistas que fazem certos estudos, a avaliar pelas conclusões de um célebre relatório encomendado e que vale a pena desenterrar? Será que no governo falam com empresários, de que se dizem tão amigos? Será que lhes perguntam por que é que investem tão pouco, de tal forma que o investimento, em percentagem do PIB, é hoje metade do que era em 2000? Será que sabem que o INE faz esta pergunta regularmente e que a resposta das empresas é esmagadora – “deterioração das perspectivas de vendas”? Será que sabem que os salários são uma das principais fontes de procura? Será que sabem que a economia também depende dos que, certamente por defeito moral, consomem tudo o que ganham, certamente o caso, por exemplo, dos trabalhadores do público que devido aos seus salários abaixo dos 600 euros tinham sido até agora relativamente poupados? E que farão os trabalhadores assalariados, em geral e já sem divisões público-privadas, os que levam para casa a fortuna média de menos de 800 euros, um regabofe? Será que sabem que as exportações, a tal procura externa que se espera que cresça à custa disto, registaram, graças à austeridade dos outros, o crescimento mais baixo desde a crise de 2009 e que isto só não tem sido pior devido à desvalorização do euro? Será que sabem tudo, mas não têm qualquer vontade, basta pensar em Gaspar, ou capacidade de dizer não à troika, aos que estão a transformar Portugal num laboratório para a enésima experiência neoliberal falhada? De resto, reconhecendo a “loucura” e o “absurdo” desta politica de desvalorização salarial e social permanente, de que as alterações à legislação laboral foram uma peça, será que João Proença, a UGT, irá repudiar o acordo que assinou e juntar-se a uma grande vaga de luta por uma alternativa, já que se está a atacar tudo o que justifica a existência de um sindicato, de uma central sindical, já que se está a agredir um país?

sábado, 8 de setembro de 2012

Responder! Dizer já basta!

A manif de 15 de Setembro será daquelas a que vale a pena ir porque iremos muitos. Isso em si mesmo transforma esta manif no acontecimento extraordinário que neste momento é preciso para pôr travão na loucura.

Num outro plano de intervenção - o da formulação propositiva de uma base programática sólida para uma convergência democrática ganhadora - o Congresso Democrático das Alternativas do dia 5 de Outubro dará um grande estímulo à unidade dos que não se conformam.


Estes dois acontecimentos são neste momento pontos focais. Tenho estado a seguir a dinâmica dos apoios a ambas as iniciativas na internet. É impressionante o ritmo a que crescem as adesões. Reforcemo-lo, dando sinal da intenção de ir à manifestação e subscrevendo o apelo do congresso.

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Para lá dos limites


O Tribunal Constitucional achou que não era equitativo; que os pensionistas e os funcionários públicos estavam a ser injustificadamente mais castigados do que os restantes portugueses. O governo decidiu continuar a dar o mesmo castigo aos funcionários públicos e aos pensionistas (sim continuam a ser cortados dois meses de salário e pensão) e passar a castigar os outros trabalhadores com um novo imposto (sim é um novo imposto) de 7% (um mês de salário).

Traduzido na linguagem doméstica de que os nossos analistas de TV tanto gostam: um dos filhos da família é injustamente esbofeteado duas vezes; para corrigir a injustiça o pai dá novamente duas bofetadas ao filho injustiçado e acrescenta uma a cada um dos restantes filhos tão sem culpa como o primeiro.

Mas o delírio continua. Quase tudo o que é tirado aos trabalhadores do privado é oferecido às empresas onde trabalham. “Não leves a mal; tiro-te um mês do teu salário par o dar ao teu patrão. É para criar emprego. Estás a ver?”

É mais imposto, um novo imposto de 7% sobre os rendimentos do trabalho do sector privado. Mais austeridade portanto. Mas é também mais desigualdade num dos países mais desiguais da Europa. Com uma taxa plana de imposto de 7% sobre todos os rendimentos salariais paga mais 7% quem recebe o salário mínimo e paga mais 7% quem recebe 50 mil por mês. 

Vamos lá ver. 

Por que razão existem escalões no IRS e não uma taxa plana? Porque sem escalões a desigualdade na distribuição do rendimento seria enorme, inaceitável. 

Qual é o efeito na distribuição de rendimento de uma taxa de 7%, igual para todos os níveis de rendimento, em cima de uma redução do número de escalões do IRS já prometida, coroada com uma redução da taxa paga pelas empresas? Um enorme aumento das desigualdades.

É para criar emprego, diz ele. Mas quantos empregos serão destruídos com a redução do rendimento disponível dos trabalhadores do privado? E quantos empregos serão criados com a redução da Taxa Social Única para as empresas? À primeira pergunta posso responder sem medo de me enganar: muitos. À segunda, respondo, também sem medo de me enganar: ninguém sabe. 

Não se iludam nem se entusiasmem...

Com o novo programa de compra «ilimitada» de dívida pública pelo BCE (títulos de curto prazo), ontem anunciado por Mario Draghi e a que o João Rodrigues já aludiu no post anterior.

Como se sublinha no Público de hoje, «Mario Draghi foi claro quando disse que o OMT [novo programa de compra de dívida pública] só será desencadeado se os países beneficiários pedirem igualmente a ajuda dos fundos de socorro do euro. Este pedido obrigará os requerentes a submeter-se a uma condicionalidade estrita, assumindo programas de ajustamento macroeconómico com objectivos precisos em termos de reformas económicas e de redução do défice orçamental, cujo cumprimento passará a ser vigiado de perto pela troika da Comissão Europeia, Fundo Monetário Internacional (FMI) e BCE».

Ou seja, trata-se sobretudo, na prática, de amortecer temporariamente a pressão dos mercados financeiros sobre as dívidas ditas soberanas, ao garantir o financiamento dos Estados em títulos de curto-prazo. Tal não significa contudo, muito pelo contrário, que esse alívio constitua uma transição da austeridade para o crescimento. De facto, mal se acaba de acenar com a cenoura o pau é imediatamente mostrado (a «condicionalidade estrita» a que se refere Draghi), reforçando o garrote sobre a soberania orçamental dos Estados e dando um novo fôlego aos desígnios de empobrecimento e de desmantelamento dos serviços públicos. O que poderá parecer, aos olhos de alguns, um bálsamo para o prisioneiro, tende a afigurar-se mais como um tónico muscular para os seus algozes.

Medos que não desaparecem


Na conferência de imprensa de ontem, o hábil dirigente político Mario Draghi disse que o BCE quer evitar “cenários destrutivos” e “medos infundados por parte dos investidores na reversibilidade do euro” (quem diria que tais criaturas podem ter tais sentimentos desligados da realidade, irracionais…).

Como afirma o editor de Economia do The Guardian, Larry Elliot, “Draghi faz Osborne parecer um membro da sociedade dos amigos de Maynard Keynes” em termos de visão sobre a política económica. De facto, quanto mais usa o seu poder monetário, mais o BCE tem capacidade para insistir consistentemente na obsessão com uma inflação que é residual, na austeridade recessiva e nas “reformas estruturais” regressivas, mais se acentua a diferença entre o poder do BCE e a sua falta de legitimidade democrática.

Ao mesmo tempo, o seu próprio diagnóstico de uma recessão induzida pelo estado dos balanços de muitos agentes económicos, preocupados em pagar dívidas, garante uma procura agregada duradouramente deprimida. Continuamos, no fundo, perante uma política económica destrutiva, feita para criar medos fundados entre as classes trabalhadoras e entre as fracções do capital mais subordinadas nas periferias cada vez mais deprimidas. Alguém ainda acredita que alguma vez poderá ser diferente?

Sabendo que é preciso que algo mude para que tudo fique na mesma, o BCE decidiu aligeirar as exigências em relação aos activos ditos soberanos que aceita como colateral nas operações de crédito nos países sob tutela presente e futura destes bandos de funcionários não-eleitos. Decidiu também terminar com a “senioridade”, o que significa que o BCE fica futuramente tão exposto como um privado a futuros incumprimentos nas operações de compra de dívida que agora se iniciam, o que se destina a dar confiança aos tais investidores. Em conjunto com as tais intervenções “ilimitadas” nos mercados secundários de títulos, com maturidades de um a três anos, da dívida que não é, na prática, soberana, tendo necessariamente como contrapartida compromissos rigorosos com a neoliberalização, estas decisões, desenhadas para a Espanha e para a Itália, acalmarão temporariamente os especuladores, criarão uma convenção “o euro aguenta-se até ver” e farão baixar os custos do financiamento a curto prazo. Impede-se assim a desagregação de um arranjo monetário ainda disfuncional nos próximos tempos.

Entretanto, até já se diz que Portugal pode começar a pensar ficar entre a parede do BCE e a espada dos financiadores privados, de novo. No entanto, a crise económica que se aprofunda decisivamente, tal como o próprio BCE confirma, e as respostas políticas, que terão de vir dos espaços nacionais onde ainda existe a possibilidade democrática de rebelião contra esta ordem monetária e financeira pós-democrática, voltarão a fundar os medos mais intensos dos “investidores”.

As esquerdas e o problema da credibilidade




Foi a germanização da UEM que permitiu à Alemanha beneficiar de um grande mercado interno para as suas exportações e sustentar a despesa da unificação com uma taxa de juro tão baixa que empurrou os capitais para a periferia da eurozona em desenvolvimento, produzindo aí uma subida nos preços dos bens não transacionáveis, um crescimento do consumo intensivo em importações e uma reorientação do investimento privado para negócios abrigados da concorrência internacional. A partir de meados dos anos noventa, as grandes empresas alemãs reconfiguram a sua cadeia de valor com deslocalizações para países da Europa Central e do Leste. Ao mesmo tempo, a Alemanha apoiou a abertura comercial da UE aos países de baixos salários pelo que, neste momento, a China ameaça ultrapassar a França como parceiro comercial da Alemanha. Hoje, Portugal sofre os efeitos de uma UEM feita à medida da Alemanha, enfrenta os resultados do mercantilismo alemão e do encaminhamento dos seus capitais para a periferia através do crédito bancário agressivo. Pior ainda, Portugal está lançado numa espiral deflacionista, imposta pela Alemanha, que não muda as causas estruturais do seu endividamento externo mas arruína as famílias, as empresas, os bancos e o Estado.
Por tudo isto, hoje, em Portugal, as esquerdas não devem alimentar a narrativa da “crise das dívidas soberanas” fixando-se na exigência de uma reestruturação da dívida pública. É por demais evidente que uma espiral depressiva só conduz à bola de neve do endividamento e, inevitavelmente, ao incumprimento da dívida pública. Mas esse é um problema derivado de um outro mais profundo, o do endividamento externo da nossa economia. Por isso, para que o discurso das esquerdas seja credível aos olhos dos portugueses, as esquerdas têm de apresentar uma narrativa para esta crise centrada na origem e na solução do nosso principal problema, o endividamento externo. Rejeitando a estratégia da troika – a desvalorização interna por redução brutal dos salários nominais – as esquerdas têm de dizer como se propõem reequilibrar as contas externas do país. Em meu entender, terão de assumir que Portugal não pode desenvolver-se sem uma estratégia de desenvolvimento, quer dizer, sem política de comércio externo, política cambial e política industrial. E, como hoje acontece, sem ter de se financiar numa moeda sobre a qual não tem soberania. Nisto se joga a credibilidade das esquerdas.

(Extracto do meu artigo de ontem no jornal i. O segundo parágrafo desta entrada apenas foi publicado na edição em papel)

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Congresso Democrático das Alternativas


«"Só vamos sair da crise empobrecendo". Este é o programa de quem governa Portugal. (...) O discurso da desistência e das “inevitabilidades” continua a impor-se contra a busca responsável de alternativas. Portugal continua amarrado a um memorando de entendimento que não é do seu interesse (...), a um pacto orçamental arbitrário, recessivo e impraticável, à margem dos portugueses.
(...) Este é o tempo para juntar forças e assumir a responsabilidade de resgatar o País. (...) É fundamental fazer escolhas difíceis: denunciar o memorando com a troika e as suas revisões, e abrir uma negociação com todos os credores para a reestruturação da dívida pública. Uma negociação que não pode deixar de ser dura, mas que é imprescindível para evitar o afundamento do país.
Para que esta alternativa ganhe corpo e triunfe politicamente, é urgente trabalhar para uma plataforma de entendimento o mais clara e ampla possível. (...) Para isso, apelamos à realização, a 5 Outubro deste ano, de um congresso de cidadãos e cidadãs que, no respeito pela autonomia dos partidos políticos e de outros movimentos e organizações, reúna todos os que sentem a necessidade e têm a vontade de debater e construir em conjunto uma alternativa à política de desastre nacional consagrada no memorando da troika e de convergir na ação política para o verdadeiro resgate democrático de Portugal.»

A Convocatória do Congresso Democrático das Alternativas, que terá lugar a 5 de Outubro, pode ser lida na íntegra e subscrita aqui. Até ao dia 10 de Setembro, a organização do congresso convida todos os interessados a fazer chegar contributos nas seguintes áreas temáticas: «Os desafios da denúncia do memorando»; «Uma economia sustentável que dignifique o trabalho»; «O lugar de Portugal na Europa e no Mundo»; «Uma sociedade mais justa e inclusiva»; «Uma democracia plena, participada e transparente».

Não podemos simplesmente continuar a assistir, estarrecidos, ao processo de destruição económica, social e política que está em curso, em nome de falsas e fracassadas «inevitabilidades». Perante todos os impasses é tempo de responder, de modo substantivo e concreto, à ofensiva ideológica que ameaça fazer regredir e transfigurar o nosso país, roubando-lhe qualquer horizonte digno de futuro.

Impactos

O chamado Estado fiscal de classe, ainda para mais austeritário, é de tal forma injusto que até um histórico da direita portuguesa, ainda que democrata-cristã, como Freitas do Amaral, tem de vir a terreno defender um imposto “especial” para quem ganha mais do que dez mil euros, uma fasquia ainda assim bastante alta. Em contraste, o governo prepara-se, a pretexto da “simplificação”, para aumentar o IRS não sobre “os portugueses”, em geral, mas sobre alguns portugueses, em particular, certamente não os que têm sido até agora tão protegidos. A verdade é que este tipo de medidas, “a caminho da taxa única”, arrisca-se a aumentar a regressividade do sistema fiscal. Que tal seguir a pertinente sugestão de André Barata e tornar obrigatória a elaboração de um “estudo de impacto igualitário” de todas as políticas, fiscais, laborais ou sociais, por exemplo, que mudam as regras sobre quem se apropria do quê e porquê? É que estamos num dos países mais desiguais da Europa e não há nada pior do que a desigualdade extrema do ponto de vista ético-político e socioeconómico.

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

O elefante no meio da sala

O fracasso colossal da terapia austeritária é um indisfarçável elefante no meio da sala, que já ninguém pode ignorar ou dizer que não vê. Os últimos dados estimados pela UTAO, apontam para que o défice no primeiro semestre de 2012 tenha atingido os 6,9%, bem longe portanto da meta dos 4,5% prevista para o final do ano. E, como se não bastasse, a mesma Unidade Técnica de Apoio Orçamental (um organismo independente que trabalha no parlamento), sublinha que os segundos semestres do ano se caracterizam, em regra, por um maior volume de execução da despesa.

Não podendo portanto continuar a negar o portentoso elefante, a maioria de direita (da Presidência da República aos grupos parlamentares que suportam o governo e passando obviamente por este), socorre-se de uma argumentação defensiva que oscila entre o «atirar poeira para os olhos» e o simples «passa-culpas». Isto é, sendo todos forçados a reconhecer que o elefante se encontra na sala, uns atribuem esse facto a misteriosas razões (alheias ao seu arbítrio) e os restantes dizem que foram outros, de fora, a permitir a entrada ao incómodo paquiderme.

As declarações de Jorge Moreira da Silva, na abertura da Universidade de Verão do PSD, são um exemplo da primeira linha de argumentação. O vice-presidente do partido diz que a quebra na captação de quase três mil milhões de receita não é culpa do executivo: «é precisamente na única área que não depende absolutamente do governo que os resultados não estão a seguir os níveis que esperaríamos. Porque em tudo o resto (...) este governo tem tido um papel notável». Pois tem, essencialmente em matéria de cortes de salários, subsídios e pensões, anunciados como temporários e que afinal correspondem, deduz-se, às famosas «gorduras do Estado». E não, a quebra do consumo interno a golpes da tripla tesoura austeritária (aumento de impostos, corte de rendimentos e desmantelamento de serviços públicos) nada tem que ver com as falências, o aumento do desemprego e a redução das receitas fiscais.

Na segunda linha argumentativa encontramos, entre outros, Cavaco Silva. Agora que o descalabro entra pelos olhos dentro, o presidente - sempre tão confiante de que Portugal iria conseguir, bastando-lhe para tal cumprir a escalada austeritária - culpa agora a troika pela mais que previsível hecatombe, sugerindo que a mesma «deve rever aquilo em que falhou».

Ter memória é crucial nos dias que correm. Não deixem por isso de ler este post do Miguel Abrantes no Câmara Corporativa, que faz bem em recuperar as palavras de Eduardo Catroga em Maio de 2011, num comentário à versão inicial do memorando («nós vamos ser muito mais radicais no nosso programa do que a troika, vamos ser muito mais radicais»); de Passos Coelho a 1 de Junho de 2011 («por isso é que sempre disse que o programa do PSD está muito para além do que a troika propõe»); ou de Teresa Leal Coelho, já em Março do corrente ano («o esforço nas reformas tem que ir além da troika»).

Não, esta gente não é vítima de um elefante que se instalou, por vontade própria, no meio da sala. Nem sequer se pode queixar que o paquiderme entrou por uma porta que foi deixada inadvertidamente aberta. Esta gente (troika incluída) fez uma coisa muito mais simples: empurrou o elefante para o meio da sala.